quinta-feira, 26 de outubro de 2006

DOURO: VENDAVAL DE (E)VENTOS

Não há fome que não dê em fartura. As comemorações, em simultâneo, dos 250 anos da criação da Região Demarcada do Douro, no distante dia 10 do mês de Setembro do ano de 1756, sem que ainda tivesse decorrido um ano após o terramoto, pelo primeiro-ministro de D. José I, Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro Marquês de Pombal, e as do quinto aniversário da classificação, pela UNESCO, do Alto Douro Vinhateiro como Património Mundial, trazem um caudal de eventos (duzentos!, dizem), em que pouco Acontecerá, mas esquecendo os problemas e deixando indiferentes o rio e suas gentes. À sombra do Douro temos tido de tudo: exposições, seminários, ciclos disto e daquilo, música, conferências, inaugurações, publicações, metodicamente pensadas, apalavradas e impressas, antologias e lançamentos de revistas, subsidiadas, mas sem um único tema sobre o Douro, prémios, estudos, palestras e, claro, a visita de Sócrates a propor, em tom de desafio, uma estratégia redentora – vinho, paisagem, cultura e turismo –, seguida, após uma esmola de uns milhões, de um bom dia, meus senhores!, e a de Cavaco que, não lhe querendo ficar atrás, desafia também os agentes locais, embora muitos dos donos do Douro sejam e estejam fora, para o desenvolvimento, e assiste à missa de Acção de Graças, em Lamego, mandada rezar a propósito das comemorações dos 250 anos da criação da Região Demarcada do Douro – não sei o que o Marquês pensará disto tudo (ou sei) – , não sem que antes nos tivesse deliciado com a sua cultura (ou ponto?) literária na Casa de Mateus. Oxalá me engane, mas desconfio que estes duzentos eventos, todos juntos, não vão chegar a um: ao Acontecimento da criação da Região Demarcada do Douro. Da pobreza na Região, a mais elevada do País, Sócrates, o ricaço “socialista”, não falou. Cavaco, por ser esta a sua missão e função, lembrou-a, clericalmente, e abalou.

Levado pela onda, abri uma antologia sobre o Douro, mergulhei nela e nas redes vieram espécies indígenas misturadas com espécies estranhas ao Douro e suas águas: lúcios com bogas, percas com barbo, achigã com mexilhão – uma caldeirada! Decididamente, recusei-me a digeri-la, depois de lhe ler o aspecto. Contudo, celebra-se este ano uma efeméride que poucos dão por ela e menos ainda aqueles que a sentem: o centenário do nascimento de Agostinho da Silva, escritor que, além de Junqueiro e Sampaio Bruno, entre outros, está ligado a Barca de Alva. A evocação e comemoração do centenário do seu nascimento tem servido, essencialmente, para pavoneio cultural de alguns, esquecendo-se o estado de degradação da estação de Barca de Alva, originado pelo encerramento, em 1987, governava então Cavaco (primeiro-ministro de 1985-1995), da linha entre o Pocinho e Barca de Alva. Como é tragicómico ver Cavaco, como presidente, dizer o contrário do que fez como primeiro-ministro, sem que isso o incomode! Por sua vez, o mentor e defensor de OTAs e TGVs, apesar de transmontano e natural de Vilar Maçada, concelho de Alijó, não teve, na linha dos transmontanos de gema com que Lisboa tem feito e faz as suas gemadas, sequer a maçada de falar no assunto – o País não pode ser solidário com vinte quilómetros de linha férrea! Meus senhores: Presidente da República, Primeiro-Ministro, Deputados eleitos pelo Distrito de Bragança, Autarcas de Vila Nova de Foz Côa, Moncorvo, Figueira de Castelo Rodrigo e Freixo de Espada à Cinta, principalmente, Delegado da Cultura e Presidentes do Turismo e do Museu do Douro, chamo-os ao silogismo:
O Douro é Património Mundial.
Barca de Alva faz parte do Douro.
Logo, logo, não: Barca de Alva, património vandalizado e destruído, não faz parte do Património Mundial.

Conhecerá a UNESCO esta falácia? O estado em que se encontra Barca de Alva é, além de vergonhoso e de uma vergonha, um insulto à Cultura, ao Património e ao Douro. Para quem a palavra é carne e não somente artificialidade e forma, Barca de Alva é um poema ofendido, rasgado, ferido: uma escrita de sofrimento.