terça-feira, 30 de janeiro de 2007

A Ciência dos Deuses

Acima dos Deuses está a sua Necessidade. A verdadeira crença mora em crermos que, acima deles e de nós, existe o Destino e a heresia em adorarmos os Deuses, desconhecendo a sua Necessidade. A ciência da Necessidade é a verdadeira teologia, por isso, ela é, em último grau, uma teologia científica. Filhos da Necessidade, não há Deuses maiores ou menores do que outros, porque todos irmãos. Diferentes rostos dela, sim. Os homens vivem uma geração, os Deuses épocas, mas só a eternidade pode ser a morada do Destino. Em verdade, em verdade vos digo que Cristo não terá a longevidade de Osíris. Cristo, com dois mil anos, está em crise, Osíris teve a eternidade do Egipto.

(in Vila Real: Motivos)

domingo, 28 de janeiro de 2007

DOIS SONETOS DE FRANCISCO DE QUEVEDO (1580-1645)

Un casado se ríe del adúltero que le paga el gozar con susto lo que a él le sobra


Díceme, don Jerónimo, que dices
que me pones los cuernos con Ginesa;
yo digo que me pones casa y mesa;
y en la mesa, capones y perdices.

Yo hallo que me pones los tapices
cuando el calor por el octubre cesa;
por ti mi bolsa, no mi testa, pesa,
aunque con molde de oro me la rices.

Este argumento es fuerte y es agudo:
tú imaginas ponerme cuernos; de obra
yo, porque lo imaginas, te desnudo.

Más cuerno es el que paga que el que cobra;
ergo, aquel que me paga, es el cornudo,
lo que de mi mujer a mí me sobra.



Um casado ri-se do adúltero que lhe paga o gozar com susto o que a ele lhe sobra

Diz-se, Dom Jerónimo, que dizes
Que me pões os cornos com Ginesa;
Eu digo que me pões a casa e a mesa;
E, na mesa, capões gordos e perdizes.

E vejo que me pões também tapetes
Quando o calor pelo Outubro cessa;
Por ti minha bolsa, não a testa, pesa,
Ainda que, com molde de ouro, tu ma frises.

Este argumento é forte e é agudo:
Tu pôr-me cornos imaginas; dest’ obra
Eu, porque o imaginas, te desnudo.

Mais corno é quem paga que quem cobra;
Ergo, aquele que me paga, é o cornudo,
O que, de minha mulher, a mim me sobra.



Hastío de un casado al tercer día


Anteayer nos casamos; hoy querría,
doña Pérez, saber ciertas verdades:
decidme, ¿cuánto número de edades
enfunda el matrimonio en sólo un día?

Un anteayer, soltero ser solía, 5
y hoy, casado, un sin fin de Navidades
han puesto dos marchitas voluntades
y más de mil antaños en la mía.

Esto de ser marido un año arreo,
aun a los azacanes empalaga: 10
todo lo cotidiano es mucho y feo.

Mujer que dura un mes, se vuelve plaga;
aun con los diablos fue dichoso Orfeo,
pues perdió la mujer que tuvo en paga.



Fastio de um casado ao terceiro dia

Faz dois dias que casámos; hoje queria,
Dona Pérez, saber certas verdades:
Dizei-me: qual o número de idades
Que afunda o matrimónio num só dia?

Anteontem ainda, solteiro ser soía,
Hoje, casado, duas pequenas vontades
Prometem um sem fim de anuidades
E mais de mil outroras de porfia.

Isto de ser marido um ano, meio,
Até aos mais valentes a alma esmaga:
Todo o quotidiano é muito e feio.

Mulher que dura um mês volve-se praga;
Por isso c'os diabos foi ditoso Orfeu,
Pois perdeu a mulher que teve em paga.


(Tradução de José Carlos Costa Pinto)

quarta-feira, 24 de janeiro de 2007

A VERDADE E O MONSTRO

Às vezes enganamo-nos, mas, desta vez, não é engano: queremos mesmo dizer o que escrevemos e não o que estão a pensar: A Bela e o Monstro. A propósito d’ A Bela e o Monstro: a antítese da história revela-nos a relatividade do gosto – a beleza, quando em excesso, vê a beleza no seu contrário: o feio em excesso. Uma mulher muito bonita apaixona-se, geralmente, por um homem feio. Esta a minha sorte.

A Natureza tem o motor e a harmonia na lei dos contrários. Segundo o polemos heraclitiano, que tudo governa, e a lógica, que ao pensar preside, o contrário de verdade é mentira e o de verdadeiro falso. Por que razão, então, o monstro em lugar de mentira? Porque, quando há lavagem do falso, o resultado é, sempre, uma monstruosidade. Esta operação lembra-nos Frankenstein, seu método e laboratório. Procurava Frankenstein melhorar o ser humano, mediante cirurgias em que substituía certos órgãos por outros que retirava de cadáveres. O resultado era sempre, apesar da utopia, um monstro. A utopia de aperfeiçoar o biológico ou o mundo teve sempre resultados contrários aos desejados, porque sempre pariu monstros biológicos ou políticos, apesar das “boas intenções”. A pior ditadura não é a da vida, mas a das ideias, que só o confronto impede. Apesar de tudo, como constatamos, a democracia também gera os seus “monstrosinhos”. Caso não houvesse ideias não havia nem ditaduras nem liberdade. Havia vida. Se, no plano individual, ninguém consegue impor a sua ideia ao outro (e ainda bem), no plano político, o meio é a ditadura, em nome de Ideias, ou em nome das ideias da economia e da economia das ideias, quando não em nome da democracia! A interferência no biológico, que se advinha, pela aplicação do saber da génese, programação, estrutura e funcionamento da vida, tornará o homem um ser ainda mais artificial. A vida artificial está mais próxima do que se imagina. A longevidade de hoje não é já artificial? Outro extremo é a religião que, ao contrário daqueles que visam corrigir o mundo, o quer substituir por outro. Uns cirurgiões do ser, outros infiéis ao ser e fiéis a Deus. Qual a maior doença?

Entremos, agora, no laboratório da lógica frankensteiniana. Hoje, a realidade é a imagem. Só existe o que aparece. Eliuh Karz afirma que a televisão mata o intermédio: os partidos, o Parlamento, nós. Eu acrescento: mata o silogismo. E se, no plano da escrita, verdadeiro e falso têm que ser suportados por uma argumentação, no plano da imagem, ela suporta-se a si mesma, limitando-se o apresentador, o próprio nome diz tudo, a fazer a sua apresentação. A imagem que nos é dada do Mundo, e que está subentendido ser a verdadeira, passa por um processo frankensteiniano: pedaço daqui, pedaço dali, tira daqui, põe ali, retoque de um lado, retoque de outro, meia verdade daqui, mentira inteira dali. A imagem «editada» da realidade que percorre os telejornais de todo o Mundo, e a “explica”, é, na maioria das vezes, um monstro. A História é, hoje, uma monstruosidade global e nada melhor do que um monstruosidade para a dizer. Todos os dias, é-nos dada, gratuitamente, através de telejornais, comentários, documentários, a verdade toda. Gratuitamente? «Não há almoços grátis». Quem suporta hoje a política não é a verdade nem a mentira, mas o monstro, que tem como Frankenstein o pensamento único e laboratório os editoriais dos media, onde, à custa de vermos mortos e despedaçados, nos transformam no maior dos monstros: não vermos, insensíveis, a monstruosidade em que o mundo está transformado. Até que a realidade, um dia, nos bata à porta!

quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

JOSÉ SÓCRATES: LE PS C’EST MOI

Sócrates é vaidoso e teimoso, dizem. Não é preciso dizê-lo: vê-se. E se a teimosia dá prioridade à vontade sobre a razão, a vaidade é, por norma, feminina. E se, no feminino, ela é espelho, no masculino, o vaidoso é espelho. Quem vê Sócrates, ouve-o baixinho: eu sou o maior e melhor, o top da política, o top dos tops. Sócrates é-se importante. Quando cumprimenta, não estende o braço, estica-o. O cumprimento de Sócrates não é próximo, mas alto e altivo, distante e importante. Anda como quem tem calos. Destes, da vaidade, por não caber nos sapatos, ou por todos os dias serem novos? E se a vaidade, no feminino, maquilha o rosto, nos políticos, manifesta-se através de uma política maquilhada pelo marketing e pelos media.

Sócrates faz tudo para esquecer as circunstâncias que lhe deram a maioria absoluta para mais facilmente se crer absoluto. Sócrates é o “nosso” Luís XIV socialista: L´État c’est moi, le PS c’est moi! Sócrates, porque inseguro, precisa do absolutismo: acabou com a concorrência do PSD metamorfoseando-se nele, acabou com a Comissão Permanente do PS e tornou-se senhor absoluto dentro do PS, decretou a lei da rolha no governo e aos deputados e cronistas incómodos oferece-lhes lugares cómodos. E estes não se fazem rogados. O povo gosta (por enquanto) dele: se gostou de Salazar, de Cavaco por que não há-de gostar de Sócrates? Não são as dificuldades e a falta de pão que abrem as portas aos poderes absolutos? O povo sente-se seguro com estes homens. Sócrates é mando e não comando, arrogância e não firmeza, agressão e não convicção. Sócrates é mandante, não comandante. Sem maiorias absolutas, Sócrates dificilmente conseguirá, tal como Cavaco, governar. O PS não faz diferença do PSD, seja no conteúdo seja na forma. No conteúdo, o PS de Sócrates é o PSD que a direita nunca tinha tido. Na forma, o PS é o líder: sem ideias, sem ideais, sem correntes de pensamento, sem soaristas, sem guterristas, sem ferristas, sem oposição, com excepção dos alegristas, sem fio de pensamento, sem uma gota de utopia. Um bafio. Uma secura à e para a esquerda. Uma fartura, à e para a direita. Sócrates aprendeu com a direita e esqueceu (se alguma vez soube alguma coisa dela) a esquerda. Nem o PS é já um partido nem Sócrates um político: o governo do PS, perdão de Sócrates, é a gerência do País e Sócrates o gerente da firma em que ele está transformado. Mais do que um gerente ou um executivo, Sócrates lembra um “standista” a quem temos que lhe agradecer a venda do carro, o nosso despedimento ou a transferência da empresa para outro lado. E, caso fosse economicamente vantajoso, Sócrates não pensava duas vezes: transferia o País para norte ou para sul, para leste ou para oeste. Sócrates não ora, ralha e, claro, não discursa, pois para isso é preciso fazê-los. Sócrates lê-os. Autor? Para seu resguardo, segredo.

Sócrates, como os canais generalistas, é generalista e as suas generalidades, ditas com ar de mando, são as responsáveis pelo seu share político. A força de Sócrates assenta na fraqueza e fragilidade económicas que vivemos e de que o “centrão” é o único e verdadeiro responsável. «Pobre do governo! Isto está tão mal!» Sócrates vai sair pela porta que abriu: pela direita. Mas, desta vez, não vai haver tempo para folgarmos as costas: à prática política de direita de Sócrates vai suceder a prática política de direita da direita. A Cavaco sucedeu Guterres, mas a Sócrates vai suceder Sócrates ou um Sócrates para pior. À direita vai suceder mais direita. Sócrates mandou a política, pela rua da direita, ladeira abaixo e vai ser difícil parar a sua inércia. E, quando for preciso sustê-la, Sócrates não vai estar lá.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2007

AS “PASSAS” POLÍTICAS

Cavaco que, pelo Natal, ficou, por estranho que pareça, mais encavacado do que todo o aparelho do PS com os elogios socratistas à coabitação e decalque políticos, entre Belém e S. Bento, vem agora, pelo Ano Novo, “distanciar-se” do voluntarismo e optimismo políticos de José Sócrates e exigir resultados para o ano que começou, nas áreas da economia, justiça e educação. Melhor, a pedir que o governo se comporte como um verdadeiro patrão e que exija resultados. O “distanciamento” é mais formal do que real. Até porque o governo de Sócrates é um verdadeiro governo de Bloco Central, sem o PSD. Esta a questão e contradição fundamentais da política actual que explicam, por um lado, a sintonia, no plano político-institucional, entre Cavaco e Sócrates, e, por outro, o mal estar, no plano partidário, no PSD, porque o torna desnecessário, lhe ata os braços e o impossibilita de ser oposição, restando-lhe, somente, a função de puxar Sócrates mais para a direita, ao mesmo tempo que Sócrates, respondendo à esquerda, vai dizendo que não, que não senhor, que o PS é de esquerda, de uma esquerda moderna e que as novas fronteiras são as não fronteiras. O recado da direita, seja o de Belém seja o da Rua São Caetano, é o mesmo: se, por um lado, satisfeitos por Sócrates ter visto a necessidade de uma política de direita, para sair da crise, por outro, insatisfeitos por ainda não ser suficientemente de direita.

Assim, as “passas” de Cavaco e as de Sócrates, são, embora os “passes”, as mesmas: exigir e responsabilizar, unilateralmente, os trabalhadores em geral, funcionários e professores. Apesar do cristianíssimo Cavaco se mostrar preocupado com a pobreza e com a necessidade de se manter a coesão social, a sua avaliação política é feita pela bitola fria do pragmatismo de direita (tal como a de Sócrates). De uma coisa Sócrates pode estar certo: se a economia não der sinais positivos e sustentáveis de mudança, durante 2007, terá a direita – Cavaco/PSD/CDS – a culpá-lo por ter ficado a meio do caminho reformista de direita, e a esquerda a responsabilizar a sua deriva pela e à direita como causa principal do fracasso. Resultados? Quanto à economia, quem pode garantir que o milagre aconteça? A economia mais do que determinada pela política determina esta. Quanto à justiça, como pedir contas a um pacto feito pelo “centrão”, tendo este se esquecido (?), Cavaco inclusive, da corrupção? Sobre educação: a escolha de Maria de Lurdes não foi um escolha pela educação e para educação, mas uma escolha da e pela «Organização» e nada melhor do que contratar uma capataz. Quando se elege a «Organização» e se esquecem a educação e os intervenientes, e não se avalia o «Desenvolvimento Curricular», como pretender dar o salto? E como acreditar num ministério que governa para a opinião pública (perdi os professores mas ganhei a população!) e substitui o diálogo pelo insulto? A ministra não só perdeu os bons professores como não ganhou os maus. Só quem não sabe onde está (em que mundo(s) estudou Sócrates?) pode afirmar: o novo Estatuto da Carreira Docente é essencial para a busca de «uma educação de excelência» em Portugal.

O sucesso de Sócrates, até ao momento, não está em ele ter “acabado” com o Outro (PSD), mas em ter transformado o PS no Outro (PSD). Com Sócrates, entramos no Mesmo. A política é uma mistura de freudismo e surrealismo com os papeis todos trocados: Cavaco é o professor-presidente que exige resultados, apesar de detestar a política e os partidos; Sócrates mandou às malvas a utopia e ocupou o espaço do PSD; este, sem espaço, vive, acompanhado do BE e do PCP, na utopia!

sábado, 6 de janeiro de 2007

DO INFERNO

«O inferno é onde quase todos vivem sem que o saibam
e donde bem poucos saem para sabê-lo... »
[Eudoro de Sousa, Mitologia História e Mito]

Esta frase lembra-nos uma outra, presente no Livro do Desassossego: «A decadência é a perda total da inconsciência; porque a inconsciência é o fundamento da vida. O coração, se pudesse, pararia». E mais estes versos de Ricardo Reis: só os que vão no rio das coisas são Felizes, porque neles pensa e sente / A vida, que não eles. A inconsciência é o analgésico que permite sobreviver no seio das labaredas das penas vitais. Ela está perto da naturalidade do instinto, contudo, este é, naturalmente, saúde, e a inconsciência, humanamente, analgésico. Só, saindo, entramos: só sabemos o inferno, que o vício é, depois de sairmos dele. Só quem saiu da vida, sabe da vida. Só quem saiu do inferno sabe do inferno e, também, sabe que a porta de acesso mais fácil aos infernos é a dos céus. Afinal, quem está desterrado e condenado: o que o está realmente, mas não o sabendo, ou o que o está no sabê-lo? Não há drama, não há tragédia, não há inferno, fora da consciência.

O inferno é o «mundo humano», melhor: a consciência dele. Este, sim, o verdadeiro inferno, que se potencia se se está contra ele. Que crime cometemos para os deuses nos condenarem à vida? Quem duvida que a vida é uma condenação? A religião não tenta salvá-la? A política não diz que a quer corrigir? A arte não faz do sonho a sua metafísica redentora? O instinto está acima da condenação. Na Natureza, não só o sofrimento está reduzido ao mínimo como não há consciência dele. A Civilização tem sido um inferno não só para o homem como para a Natureza e a vida, em geral. Se alguma espécie, superior à nossa, nos suceder, ver-nos-á como de facto somos: uma praga. E como as outras espécies invocarão os seus deuses para se verem livres de nós! Porque a melhor maneira de entrar é sair, todo o que sai, para entrar, condena-se à exclusão. Só sabemos o que é o amor, saindo dele, mas, se o sabemos, não o temos. Qual o melhor: tê-lo sem o saber, ou sabê-lo e não tê-lo? A consciência expulsa-nos das coisas, porque nos obriga a estar de fora para as ver. Assim, o consciente é temerário e o inconsciente aventureiro. A consciência não é boa companheira para a vida: a vida é para estar dentro dela e a melhor forma de a cumprir é não a questionar. Ela está fora de qualquer questão: «a inconsciência é o fundamento da vida». A consciência é, vitalmente, decadência e o consciente um doente.

O mito está certo: a queda foi a expulsão da inocência. Ser livre é livrarmo-nos de tudo o que nos prende, contudo, ao abdicarmos de possuir e de ser possuídos, abdicamos de viver. Só precisa de liberdade quem se sabe condenado. Os outros cumprem a vida. Por isso, só os que abdicam e «saem do inferno para sabê-lo», e tê-lo, têm necessidade e liberdade para criar céus. Todos precisam de um céu: o paraíso, para os crentes, a democracia, para os inconscientes, a Arte, para os conscientes.

terça-feira, 2 de janeiro de 2007

BOM ANO NOVO

O fim de ano é tempo de balanço. Para quem a vida é ter, o fim de ano é tempo de balanço e de encerramento de contas. E se, comercialmente, o haver tem de bater o dever, ontologicamente, o ser tem de bater o não ser. A História é comércio e nós mercadoria: ter ou não ter, eis a questão. E se, num plano civilizacional, a maioria é minoria no ter, que dizer, no plano essencial: no ser? Para quantos as palavras do príncipe Hamlet – To be or not to be, that is the question – é mesmo a questão fundamental? E ainda bem que a não é, porque, se fosse, a vida era revolta e a História uma Casa de Saúde. Se a ontologia tivesse a exigência comercial, quantos restariam sem falir? Apesar da democracia, a História, seja pelo ter seja pelo ser, é de minorias. E se a questão do ter é do foro da política, cada vez mais desacreditada e em que poucos se empenham a não ser os que ganham com isso e com ela, a questão do ser, além de pertencer ao foro íntimo de cada um, não traz vantagens. Quem, ontologicamente, está consciente ou sonha ou vive sob a tentação do suicídio: “Ser ou não ser, eis a questão: / Será mais digno para o espírito suportar / Os golpes e as feridas de um infame destino / Ou revoltar-se contra a vaga de males / E pôr fim a tudo pela recusa de viver? / Morrer, dormir. Acabou-se, e pelo sono esquecer / Os tormentos e todas as agressões / Que afligem a nossa condição. Eis aí o fim /Mais desejável. Morrer, dormir. / Dormir! Então talvez sonhar: eis a questão. [Shakespeare, Hamlet, III, 1]. A arte, ao abdicar e não servir o ter, não deixa de ser o “suicídio” necessário para poder sonhar. E criar.

O balanço, positivo, do ser que faço deste ano, devo-o, principalmente, às seguintes leituras: El Arco y la Lira, de Octavio Paz, as obras Dans l’Œil du Miroir, L’individu, la mort, l’amour, e Mythe et pensée chez les grecs, de Jean-Pierre Vernant, From the many to the One, de A.W.H. Adkins, e o já clássico A Descoberta do Espírito, de Bruno Snell. Em El Arco y la Lira, espécie de Poética, encontrei – só agora! Como há livros que encontramos tarde! – a confirmação do pouco que tinha já pensado sobre o assunto e a resposta ao muito que ignorava. O ensaio El Arco y la Lira de Octávio Paz, que tem nos ensaios pessoanos Heróstrato e Impermanência os seus congéneres literários, confirma aquilo que vem já da Romantik: que não há poetar (poiesis) sem poética (teoria). Graças aos livros de Jean-Pierre Vernant, de A.W.H. Adkins e de Bruno Snell, fiz o meu cursinho de psicologia histórica que, além de me darem a conhecer os estratos das camadas da “psicologia” grega, me vai permitir saber ler Homero – pondo de lado os meus olhos civilizacionais – e compreender melhor por que razão O Guardador de Rebanhos é mais uma teoria sobre a sensação primitiva do que a sua expressão poética.

Para todos, que a vida de todos precisa – tenham ou não tenham, sejam ou não sejam, sonhem ou não sonhem, com a questão ou sem ela, connosco concordem ou discordem –, Bom Ano Novo.