terça-feira, 2 de janeiro de 2007

BOM ANO NOVO

O fim de ano é tempo de balanço. Para quem a vida é ter, o fim de ano é tempo de balanço e de encerramento de contas. E se, comercialmente, o haver tem de bater o dever, ontologicamente, o ser tem de bater o não ser. A História é comércio e nós mercadoria: ter ou não ter, eis a questão. E se, num plano civilizacional, a maioria é minoria no ter, que dizer, no plano essencial: no ser? Para quantos as palavras do príncipe Hamlet – To be or not to be, that is the question – é mesmo a questão fundamental? E ainda bem que a não é, porque, se fosse, a vida era revolta e a História uma Casa de Saúde. Se a ontologia tivesse a exigência comercial, quantos restariam sem falir? Apesar da democracia, a História, seja pelo ter seja pelo ser, é de minorias. E se a questão do ter é do foro da política, cada vez mais desacreditada e em que poucos se empenham a não ser os que ganham com isso e com ela, a questão do ser, além de pertencer ao foro íntimo de cada um, não traz vantagens. Quem, ontologicamente, está consciente ou sonha ou vive sob a tentação do suicídio: “Ser ou não ser, eis a questão: / Será mais digno para o espírito suportar / Os golpes e as feridas de um infame destino / Ou revoltar-se contra a vaga de males / E pôr fim a tudo pela recusa de viver? / Morrer, dormir. Acabou-se, e pelo sono esquecer / Os tormentos e todas as agressões / Que afligem a nossa condição. Eis aí o fim /Mais desejável. Morrer, dormir. / Dormir! Então talvez sonhar: eis a questão. [Shakespeare, Hamlet, III, 1]. A arte, ao abdicar e não servir o ter, não deixa de ser o “suicídio” necessário para poder sonhar. E criar.

O balanço, positivo, do ser que faço deste ano, devo-o, principalmente, às seguintes leituras: El Arco y la Lira, de Octavio Paz, as obras Dans l’Œil du Miroir, L’individu, la mort, l’amour, e Mythe et pensée chez les grecs, de Jean-Pierre Vernant, From the many to the One, de A.W.H. Adkins, e o já clássico A Descoberta do Espírito, de Bruno Snell. Em El Arco y la Lira, espécie de Poética, encontrei – só agora! Como há livros que encontramos tarde! – a confirmação do pouco que tinha já pensado sobre o assunto e a resposta ao muito que ignorava. O ensaio El Arco y la Lira de Octávio Paz, que tem nos ensaios pessoanos Heróstrato e Impermanência os seus congéneres literários, confirma aquilo que vem já da Romantik: que não há poetar (poiesis) sem poética (teoria). Graças aos livros de Jean-Pierre Vernant, de A.W.H. Adkins e de Bruno Snell, fiz o meu cursinho de psicologia histórica que, além de me darem a conhecer os estratos das camadas da “psicologia” grega, me vai permitir saber ler Homero – pondo de lado os meus olhos civilizacionais – e compreender melhor por que razão O Guardador de Rebanhos é mais uma teoria sobre a sensação primitiva do que a sua expressão poética.

Para todos, que a vida de todos precisa – tenham ou não tenham, sejam ou não sejam, sonhem ou não sonhem, com a questão ou sem ela, connosco concordem ou discordem –, Bom Ano Novo.