quarta-feira, 27 de dezembro de 2006

FERO, FERS, FERRE, TULI, LATUM

Não são raras as vezes que retemos mais aquilo que ouvimos indirectamente do que directamente. E com outra vantagem: não só não somos obrigados a ouvir aquilo que não nos interessa como saímos quando nos dá na gana. Alguém, falando com outro, enunciou o verbo anómalo latino fero, fers, ferre, tuli, latum, que significa – levar, suportar – e que todo o antigo estudante de latim gostava de decorar para botar figura, estratégia que o homem não perdeu, apesar de entradote na idade. Os verbos reflectem a flexão do ser e, consequentemente, a sua regularidade, irregularidade, anomalia, incoação, defectividade, pessoalidade, impessoalidade, para além da voz, tempo e modo. Mas o mais estranho, ou não, é que o verbo ontológico por excelência – o verbo esse (ser) – seja ele mesmo anómalo – sum, es, esse, fui –, como que advertindo-nos que o ser contém a anomalia na sua própria essência. Ou se quisermos: a defectividade original do ser, de que o pecado original é a sua versão teológica e o não ser a ontológica. E andamos nós a querer uma vida regular, normal, perfeita e, se possível, conjugada na passiva. Pior do que o pecado original do ser e da vida é o seu final: a Noite.

Quando estudante, a enunciação de um verbo – fosse em latim: amo, amas amare, amavi, amatum; fosse em inglês: to be, was, been; fosse em francês: aimer, aimant, aimé, j’aime, j’aimai – era obrigatória, reflectindo um ensino estruturado e estruturante. Chamavam-lhe, e bem, as «bases». Quem é que, hoje, tem «bases e com elas se preocupa? Hoje, as bases são como os tectos: falsas. Sem «bases», ninguém pode crescer, fazer o seu edifício teórico e tornar-se espiritualmente autónomo. A democracia, no que nos diz respeito, trouxe a liberdade de pensar, mas levou a exigência. A democracia só se cumpre quando cria espíritos livres, sustentados e independentes. A crítica e o corte absoluto com o passado originou um vazio, que, regra geral, foi mal e apressadamente preenchido. Saber enunciar um verbo é perceber a estrutura radical do verbo nos tempos fundamentais: presente (primeira e segunda pessoa), infinito presente, pretérito perfeito e supino activo, no caso do latim. Hoje, os livros são mais «imagem» do que saber: estão cheios de vedetas de telenovelas, do futebol, da moda, da música e vazios de conteúdo. E, em lugar de um ensino estruturado, temos um ensino “despernado”, feito de remendos, de cruzes, de “copianços”, de cuspo e fotocópias. Ah, como a “bandeira” do inglês de Sócrates e de sua ministra Maria de Lurdes, de que não se conhece uma ideia sobre educação, mais arreou a nacional! Ontem, mandava, mal, o professor, hoje manda, pior, o aluno. Quando mandará o saber? Mas como, se ele foi expulso da sala de aulas? Quantos sabem ler um texto e interpretá-lo? Quantos têm uma ideia própria? Quantos sabem estruturar um pensamento? Quantos sabem e dão importância aos princípios seja na lógica seja na vida? A resposta está à vista: os princípios são a coisa que menos interessa, seja para a multidão seja para a política. A escola está como a vida: sem rigor nem princípios. Salve quem se puder. Quem está errado é o coerente, lógica e eticamente. Oxalá que este meu vaticínio se não confirme: se as medidas que o governo de Sócrates tomou para as diferentes áreas da vida forem iguais àquelas que tomou para o ensino, o desfecho vai ser catastrófico. E que dizer das consequências do processo de Bolonha? Estará, nele, salvaguardada a dialéctica entre «saber» e «competências»?

Acabemos como iniciámos, fazendo outra citação, mas esta, apesar de se ter seguido à primeira e vinda de outro, tendo mais a ver com o estômago do que com verbos: «já são horas, vou comer umas bolinhas da terra a casa de meu pai». E, sem mais, partiu. Ora, aqui está uma expressão que não conhecia. Não há ninguém que não tenha algo a ensinar-nos. Estejamos nós atentos e sem soberba.
Itálico
Post scriptum. Em que mundo estamos?! Interrogação e pasmo, que vêm a propósito das palavras que o porta-voz da Casa Branca, Tony Fratto, proferiu a propósito da morte de Pinochet: «A ditadura de Augusto Pinochet no Chile representou um dos períodos mais difíceis da história da nação. Os nossos pensamentos estão com as vítimas do seu regime e as suas famílias. Elogiamos o povo do Chile por ter construído uma sociedade baseada na liberdade, lei e respeito pelos direitos humanos». Como estas palavras são ofensivas, quando o golpe e a ditadura de Pinochet tiveram como aliados principais Washington e a CIA!