quinta-feira, 21 de dezembro de 2006

NATAL E MORTE DOS DEUSES

Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural.
Ele é o divino que sorri e que brinca.
[Alberto Caeiro, «Ode» VIII]

Os Deuses, embora nós, são diferentes de nós. Logo à nascença: nós somos filhos da biologia e nove meses de gestação lhe bastam para reproduzir o que lhe demorou milhares de milhões de anos a construir e nos expulsar para a vida; eles filhos dos tempos, melhor, dos nossos contra-tempos, e sua gestação séculos. Os homens germinam no útero materno, os Deuses no útero do espírito do tempo. Nós vindos do sémen, eles do desconhecido ou de mares de lágrimas. Andar a bisbilhotar o dia de nascimento e a vida dos Deuses é não só não perceber os Deuses e a nós como perder tempo, porque procurá-los onde não estão. E se diferentes no nascer, diferentes no morrer: nós, vindos da biologia, por esgotamento desta morremos, eles, porque filhos dos tempos, pelos finais dos grandes ciclos do espírito dos tempos, se apagam. Nós vivemos uma geração, eles in saecula saeculorum. Mas, como nós, finitos. Há duas meteorologias: a do tempo e a do espírito. A primeira é regida por alta e baixas pressões, por ciclones e anti-clones, a segunda, pelas tormentas e abertas do mundo humano, espécie de nevoeiro que se levanta do mar da vida e onde nascem os Deuses. Mas ambas em aquecimento global: vida e atmosfera estão poluídas.

Estamos no Natal. O Deus Menino, à semelhança dos Deuses solares do tempo Quando no alto não se nomeava o céu, nasce no solstício de Inverno. Os Deuses antigos eram terra, sol e vida. Na nora do eterno retorno do tempo, o solstício é re-começo. Como poderiam os Deuses esquecê-lo? E que melhor data para o nascimento do Deus Menino? A simbologia dos Deuses nascidos no solstício, antes de ser salvação, era, imitando o sol, re-início do tempo. A salvação veio com o nosso adoecimento: quando se perdeu o sentido da terra, da vida e do sol. E de nós. O Deus Menino traz a mensagem do solstício: nascer de novo. Contudo, a prenda de nascer raramente vive de mãos dadas com a prenda de ser novo todos os dias. E aqueles que, ao longo de uma vida, os seus dias são de míngua e a mingar? Religião é re-ligar – volver à terra os náufragos – e não caridade – esmola para o náufrago, esquecendo o naufrágio. O presépio, símbolo de despojamento, não pode ser utilizado como justificação de pobreza e miséria. Muito menos feito, sacrilegamente, depósito de compras.

O Pai Natal, caixeiro viajante, com entregas ao domicílio, matou o Deus Menino, o consumismo o despojamento, o individualismo a solidariedade, o adulto a Criança. O Natal esqueceu o solstício e sua ligação à Terra e à vida. Que nova geração divina parirá a globalização das globalizações? Quem não ouve a agonia divina? E a nossa? O deus do «ter» está a matar o Deus do «não-ser» como este tinha morto os Deuses do «ser». Nunca o homem esteve tão só e órfão: não só partiram os Deuses, mas também a política. Resta-nos a poesia e a metafísica do capitalismo: o céu terreno, lotaria que sai a poucos, mas que a fé alimenta. Nunca houve tantos à manjedoura da vida e sem um Deus onde se agarrarem e uma política onde votarem. E sem Natal. E quem os adora? Não aborrecem os Deuses aqueles que neles não crêem, mas os que os utilizam. Descrentes, de nós e do mundo, é o que nós somos. Quem está a matar os Deuses não é o materialismo, mas a materialidade. Quem tem dinheiro compra a felicidade terrena, quem não o tem, que o roube ou, então, que se suicide. Para quando o solstício? E nós Crianças, sempre?