quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

O “ÚLTIMO” HOMEM



Saímos do século XX e entrámos no século XXI como se tivéssemos saído da superação e entrado na estagnação, saído das portas da salvação e entrado no apocalipse, saído de um terraço de luz e entrado no funil do eclipse. As Luzes apagaram-se, a Dialéctica emudeceu, a Utopia morreu. Ficamos sem horários e estações, onde tomar o comboio histórico. A Linha fechou. A História parou na América. Feitos mercadoria, não passamos de um embrulho qualquer, despachado num contentor qualquer em um barco qualquer. A democracia, sob holofotes, transformou-se na comédia de sempre, com os dois actos de sempre e os actores de sempre. A História, apesar de tantos analistas, é, hoje, um apagão e a Aldeia Global o sinal de esgotamento da Terra. E de nós. Ou nos foi mal ensinada ou não compreendemos a História: Berlim não foi derrotada. Foi superada. Superada. Ouviram? A derrotada foi a Utopia. Berlim foi prenúncio e anúncio da eminência do império global. Emigrou para a América e fez da sua saga um filme de Hollywood. Onde estamos. Sob o silêncio cúmplice de Deus, da Política e da Razão, morrem todos os dias, na Auschwitz da fome pós-moderna, onze mil crianças. Não foram as estações do Calvário nem a crucificação que condenaram o Filho do Homem, mas a cruz de ontem, de hoje e de amanhã de milhões de crucificados. Os apóstolos, há muito que partiram. Ficou a nomenclatura.

Ontem, sonhámo-nos passageiros no comboio do Progresso, a caminho da estação da felicidade. E por todo o lado víamos sinais do advento do homem novo, crentes na superação da alienação e na reposição no homem o que é do homem. Nietzsche viu na «morte de Deus» o anúncio da vinda do super-homem. Marx, perante a exploração em massa das massas, fundou o seu humanismo na devolução ao homem daquilo que é do homem: Deus e a criação. Tarefa nada fácil. A luta de classes não é o motor da História? E adorar Deus não é mais fácil do que sê-lo? A própria democracia não deixa de ser intrigante: por que razão a esquerda não vence sempre as eleições, se os oprimidos, que ela representa (ou diz representar), são a maioria? Não é só na política, os oprimidos são, em tudo, criaturas estranhas (ou bem adaptadas?): têm um Deus nos céus e um senhor na Terra, rezam a um e votam no outro. E, caso o soubessem, que juízo fariam daqueles que sonham a História?

O sonho no Progresso e no homem novo esvaiu-se da noite para o dia. Como a realidade nos acorda e tira do sonho! Está tudo no fim: Deus morreu, a História no fim está e a Razão transformada em serva da tecnologia. O homem? Outra espécie vem a caminho: o transhumano, filho da bio e da nanotecnologia. Nós? Os “últimos” homens.

domingo, 3 de fevereiro de 2008

O GOSTO

A Dona Maria de Lurdes

Ajuizar, embora nem sempre ajuizadamente, é o respirar da mente. Há duas espécies de juízos: os de facto e os de valor. Nos primeiros, ajuizamos sobre o verdadeiro ou falso, nos segundos, valoramos: isto é bem, aquilo é mal, isto é belo, aquilo feio... Costuma dizer-se que, no primeiro caso, o mundo é a preto e branco – ou é ou não é –, enquanto que, no segundo, é a cores: um arco-íris de opiniões ou uma borrão delas.

Há uma tendência no ensino para valorizar mais a razão do que a sensibilidade, mais a lógica do que estética, mais o entendimento do que a imaginação. Não admira, assim, que, nesta hora de cientismo e tecnologia, as disciplinas de matemática, biologia e física apareçam como supremas, esquecendo-se que, sem imaginação e estética, não se pode, por uma lado, compreender a pauta matemática do mundo e a harmonia e a criatividade da Natureza nem, por outro, haver uma educação integral. A propósito da criatividade da Natureza, Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, escreve: «Dionísio e Apolo – impulsos artísticos da natureza». E não será da unidade estética entre a criação natural e a humana que nos fala o poema de Pessoa/ Avaro de Campos?: «O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo....». Assim, o ensinar, tanto ou mais do que uma explicação lógica, devia ser uma explicação estética: a física, a química, a biologia não deixam de ser manifestações artísticas da Natureza. Sobrevalorizar o intelecto e subestimar a sensibilidade e a vontade não é educar, mas deformar. A pedagogia que deve presidir, por exemplo, à leccionação da lei de gravitação universal de Newton não pode ser a sua redução à lógica, mas, antes, mostrar em que medida ela é a responsável pela harmonia e beleza cinéticas do sistema solar e do Universo. O gosto e a sensibilidade não podem deixar de fazer parte da formação humana. É a prática estética e a fruição do Belo que fazem uma sensibilidade artística, porque, tal como outras faculdades, o gosto necessita de uma aprendizagem. O que é a Escola de Belas Artes senão a Escola do gosto? A razão sem sensibilidade é gelo e sem imaginação uma ave sem asas. O gosto aprecia o silêncio, a serenidade e a medida. Sem gosto não há formação, mas deformação, não há sensibilidade, mas rudeza, não há palavra, mas ruído. Não há, enfim, bom profissional, sem sensibilidade e gosto naquilo que faz. O próprio decorar de uma casa ou o vestir não passam só pelo dinheiro, mas pelo gosto. Quem o não tem entregue-se nas mãos de quem o tem. Para muitos, o gosto é vestir-se de moda, sem gosto.

E por que razão a obra final dos grandes filósofos é sobre estética? Terá sido a constatação de que a sua obra ficaria incompleta sem a estética ou o reconhecimento tardio da sua importância? Será bom lembrar que antes de o homem ser religioso ou filósofo foi esteta: Foz Côa e Altamira são muito anteriores ao Templo, ao Liceu e à Academia.