quarta-feira, 27 de dezembro de 2006

FERO, FERS, FERRE, TULI, LATUM

Não são raras as vezes que retemos mais aquilo que ouvimos indirectamente do que directamente. E com outra vantagem: não só não somos obrigados a ouvir aquilo que não nos interessa como saímos quando nos dá na gana. Alguém, falando com outro, enunciou o verbo anómalo latino fero, fers, ferre, tuli, latum, que significa – levar, suportar – e que todo o antigo estudante de latim gostava de decorar para botar figura, estratégia que o homem não perdeu, apesar de entradote na idade. Os verbos reflectem a flexão do ser e, consequentemente, a sua regularidade, irregularidade, anomalia, incoação, defectividade, pessoalidade, impessoalidade, para além da voz, tempo e modo. Mas o mais estranho, ou não, é que o verbo ontológico por excelência – o verbo esse (ser) – seja ele mesmo anómalo – sum, es, esse, fui –, como que advertindo-nos que o ser contém a anomalia na sua própria essência. Ou se quisermos: a defectividade original do ser, de que o pecado original é a sua versão teológica e o não ser a ontológica. E andamos nós a querer uma vida regular, normal, perfeita e, se possível, conjugada na passiva. Pior do que o pecado original do ser e da vida é o seu final: a Noite.

Quando estudante, a enunciação de um verbo – fosse em latim: amo, amas amare, amavi, amatum; fosse em inglês: to be, was, been; fosse em francês: aimer, aimant, aimé, j’aime, j’aimai – era obrigatória, reflectindo um ensino estruturado e estruturante. Chamavam-lhe, e bem, as «bases». Quem é que, hoje, tem «bases e com elas se preocupa? Hoje, as bases são como os tectos: falsas. Sem «bases», ninguém pode crescer, fazer o seu edifício teórico e tornar-se espiritualmente autónomo. A democracia, no que nos diz respeito, trouxe a liberdade de pensar, mas levou a exigência. A democracia só se cumpre quando cria espíritos livres, sustentados e independentes. A crítica e o corte absoluto com o passado originou um vazio, que, regra geral, foi mal e apressadamente preenchido. Saber enunciar um verbo é perceber a estrutura radical do verbo nos tempos fundamentais: presente (primeira e segunda pessoa), infinito presente, pretérito perfeito e supino activo, no caso do latim. Hoje, os livros são mais «imagem» do que saber: estão cheios de vedetas de telenovelas, do futebol, da moda, da música e vazios de conteúdo. E, em lugar de um ensino estruturado, temos um ensino “despernado”, feito de remendos, de cruzes, de “copianços”, de cuspo e fotocópias. Ah, como a “bandeira” do inglês de Sócrates e de sua ministra Maria de Lurdes, de que não se conhece uma ideia sobre educação, mais arreou a nacional! Ontem, mandava, mal, o professor, hoje manda, pior, o aluno. Quando mandará o saber? Mas como, se ele foi expulso da sala de aulas? Quantos sabem ler um texto e interpretá-lo? Quantos têm uma ideia própria? Quantos sabem estruturar um pensamento? Quantos sabem e dão importância aos princípios seja na lógica seja na vida? A resposta está à vista: os princípios são a coisa que menos interessa, seja para a multidão seja para a política. A escola está como a vida: sem rigor nem princípios. Salve quem se puder. Quem está errado é o coerente, lógica e eticamente. Oxalá que este meu vaticínio se não confirme: se as medidas que o governo de Sócrates tomou para as diferentes áreas da vida forem iguais àquelas que tomou para o ensino, o desfecho vai ser catastrófico. E que dizer das consequências do processo de Bolonha? Estará, nele, salvaguardada a dialéctica entre «saber» e «competências»?

Acabemos como iniciámos, fazendo outra citação, mas esta, apesar de se ter seguido à primeira e vinda de outro, tendo mais a ver com o estômago do que com verbos: «já são horas, vou comer umas bolinhas da terra a casa de meu pai». E, sem mais, partiu. Ora, aqui está uma expressão que não conhecia. Não há ninguém que não tenha algo a ensinar-nos. Estejamos nós atentos e sem soberba.
Itálico
Post scriptum. Em que mundo estamos?! Interrogação e pasmo, que vêm a propósito das palavras que o porta-voz da Casa Branca, Tony Fratto, proferiu a propósito da morte de Pinochet: «A ditadura de Augusto Pinochet no Chile representou um dos períodos mais difíceis da história da nação. Os nossos pensamentos estão com as vítimas do seu regime e as suas famílias. Elogiamos o povo do Chile por ter construído uma sociedade baseada na liberdade, lei e respeito pelos direitos humanos». Como estas palavras são ofensivas, quando o golpe e a ditadura de Pinochet tiveram como aliados principais Washington e a CIA!

quinta-feira, 21 de dezembro de 2006

NATAL E MORTE DOS DEUSES

Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural.
Ele é o divino que sorri e que brinca.
[Alberto Caeiro, «Ode» VIII]

Os Deuses, embora nós, são diferentes de nós. Logo à nascença: nós somos filhos da biologia e nove meses de gestação lhe bastam para reproduzir o que lhe demorou milhares de milhões de anos a construir e nos expulsar para a vida; eles filhos dos tempos, melhor, dos nossos contra-tempos, e sua gestação séculos. Os homens germinam no útero materno, os Deuses no útero do espírito do tempo. Nós vindos do sémen, eles do desconhecido ou de mares de lágrimas. Andar a bisbilhotar o dia de nascimento e a vida dos Deuses é não só não perceber os Deuses e a nós como perder tempo, porque procurá-los onde não estão. E se diferentes no nascer, diferentes no morrer: nós, vindos da biologia, por esgotamento desta morremos, eles, porque filhos dos tempos, pelos finais dos grandes ciclos do espírito dos tempos, se apagam. Nós vivemos uma geração, eles in saecula saeculorum. Mas, como nós, finitos. Há duas meteorologias: a do tempo e a do espírito. A primeira é regida por alta e baixas pressões, por ciclones e anti-clones, a segunda, pelas tormentas e abertas do mundo humano, espécie de nevoeiro que se levanta do mar da vida e onde nascem os Deuses. Mas ambas em aquecimento global: vida e atmosfera estão poluídas.

Estamos no Natal. O Deus Menino, à semelhança dos Deuses solares do tempo Quando no alto não se nomeava o céu, nasce no solstício de Inverno. Os Deuses antigos eram terra, sol e vida. Na nora do eterno retorno do tempo, o solstício é re-começo. Como poderiam os Deuses esquecê-lo? E que melhor data para o nascimento do Deus Menino? A simbologia dos Deuses nascidos no solstício, antes de ser salvação, era, imitando o sol, re-início do tempo. A salvação veio com o nosso adoecimento: quando se perdeu o sentido da terra, da vida e do sol. E de nós. O Deus Menino traz a mensagem do solstício: nascer de novo. Contudo, a prenda de nascer raramente vive de mãos dadas com a prenda de ser novo todos os dias. E aqueles que, ao longo de uma vida, os seus dias são de míngua e a mingar? Religião é re-ligar – volver à terra os náufragos – e não caridade – esmola para o náufrago, esquecendo o naufrágio. O presépio, símbolo de despojamento, não pode ser utilizado como justificação de pobreza e miséria. Muito menos feito, sacrilegamente, depósito de compras.

O Pai Natal, caixeiro viajante, com entregas ao domicílio, matou o Deus Menino, o consumismo o despojamento, o individualismo a solidariedade, o adulto a Criança. O Natal esqueceu o solstício e sua ligação à Terra e à vida. Que nova geração divina parirá a globalização das globalizações? Quem não ouve a agonia divina? E a nossa? O deus do «ter» está a matar o Deus do «não-ser» como este tinha morto os Deuses do «ser». Nunca o homem esteve tão só e órfão: não só partiram os Deuses, mas também a política. Resta-nos a poesia e a metafísica do capitalismo: o céu terreno, lotaria que sai a poucos, mas que a fé alimenta. Nunca houve tantos à manjedoura da vida e sem um Deus onde se agarrarem e uma política onde votarem. E sem Natal. E quem os adora? Não aborrecem os Deuses aqueles que neles não crêem, mas os que os utilizam. Descrentes, de nós e do mundo, é o que nós somos. Quem está a matar os Deuses não é o materialismo, mas a materialidade. Quem tem dinheiro compra a felicidade terrena, quem não o tem, que o roube ou, então, que se suicide. Para quando o solstício? E nós Crianças, sempre?

segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

VITRAIS DA SÉ DE VILA REAL: UMA LEITURA

0. A História do Espírito passa, segundo Hegel, por três estádios: a arte, a religião e a filosofia. De facto, o homem, primeiro, criou, depois, adorou e, por último, racionalizou. Mas, contrariamente à previsão hegeliana do fim da arte, esta reaparece com mais força do que nunca, a partir da segunda metade do século XIX, ao contrário da razão, que entra, a partir de então, em crise, na sua concepção iluminista, e da religião, que vive a hora da «morte de Deus», apregoada por Nietzsche, em Assim Falava Zaratustra, principalmente.

1. No passado dia 3 de Abril, data da apresentação pública dos Vitrais da Sé de Vila Real de João Vieira, lá estive. Depois disso, já lá voltei várias vezes. E como neles vivem, compaginadamente, a arte, religião e filosofia! O próprio autor, na sua simples e breve intervenção, a contrastar com a longa e maçuda retórica do poder, confessou, publicamente, que, quem o informou, foi o evangelista S. João, a quem dedicou a Obra. Esta empatia entre eles, que está na base da unidade e harmonia profundas entre a forma e conteúdo dos vitrais, é fácil de ver: S. João é o evangelista do Verbo, João Vieira o pintor de letras de luz. Além de evangelista, S. João é poeta, acrescentou João Vieira, mas, aumentamos nós, S. João é, também, filósofo. E é precisamente isto que o faz único entre os evangelistas. João evangelista é influenciado pelo Logos de Fílon de Alexandria (20 a. C – 54 e que Nero mandou matar), filósofo que criou uma doutrina filosófico-religiosa, que ligava o platonismo com a religião judaica: o Logos [Palavra, Razão] passou a ser o intermediário entre a divindade e o mundo. S. João, o evangelista do Logos, ao personificá-lo, fez de Cristo o Logos intermediário: Ninguém jamais viu Deus; o Filho unigénito, que está no seio do Pai, esse é quem o deu a conhecer [S. João, 1, 18]. O prólogo do Evangelho de S. João é um hino ao Logos [Verbo]: No princípio era o Verbo, e o Verbo era com Deus, e o verbo era Deus [S. João, 1, 1]. Pode mesmo dizer-se que os primeiros dezoito versículos do Evangelho Segundo S. João são o primeiro texto teológico do cristianismo, além de estarem em consonância com o internacionalismo religioso das epístolas paulistas, não reduzindo, como o fazia Pedro, o cristianismo nascente a uma forma de religião nacional judaica: E todos nós participamos da sua plenitude e graça por graça. Porque a lei foi dada por Moisés, a graça e a verdade foi trazida por Jesus Cristo. [S. João, 1, 16 e 17]. A filosofia do Logos, na linha do platonismo, acentuou a dualidade espírito/matéria e a necessidade de salvar e de substituir este mundo por outro, como vemos no evangelista do espírito: …quem não renascer da água e do espírito não pode entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne, é carne; e o que é nascido do espírito, é espírito. [S. João, 3, 5 e 6]. Esta a diferença — mais especulativa e filosófica, e menos histórico-descritiva da vida de Jesus —, que o distingue dos Evangelhos sinópticos: Marcos, Mateus e Lucas limitam-se a descrever, de uma forma muito semelhante e “realista”, a história da vida de Jesus. S. João, ao contrário, parece “distante” dos acontecimentos, moldando-os segundo a teoria do sentido duplo de Fílon: o sentido alegórico e místico.

2. Ao eleger o tema do Logos [Verbo] para os seus vitrais, João Vieira elegeu, consequentemente, o evangelista S. João. Ele está no momento e espaço mais altos dos vitrais. Enquanto Marcos, Mateus e Lucas, ocupam, com tonalidades prosaicas, cada um, sua fresta na nave lateral, do lado sul, João desdobra-se, em cores mais quentes e alegres, pelas três frestas da nave do lado norte e a poesia filosófica do Verbo — No princípio era o Verbo, e o Verbo era com Deus, e o verbo era Deus [S. João, 1, 1] —, escrita em versos de cor e luz, habita a parte mais alta da Sé — as frestas, três de cada lado, da nave central. A altura física lembra a ascese platónica e a cristã, elevando-se à Ideia, pela reminiscência cognitiva («conhecer é recordar»), e a Deus, mediante o Verbo, respectivamente. Nos quatro janelões do presbitério estão os nomes, em latim, dos doze Apóstolos: Pedro, André, Jacob Zebedeu, João, Filipe, Bartolomeu, Tomé, Mateus, Jacob Alfeu, Judas Tadeu, Simão Zelotes, Matias. Pela exuberância de cor e letras, os vitrais, tendo como fundo uma cruz azulada, lembram manuscritos antigos ou mesmo painéis. No transepto do lado sul, há, além da pequena rosácea, a sul, uma referência, a poente, aos dominicanos [domini/cani] — os «cães do Senhor», os «guardiões do Senhor». Contudo, quantas vezes, as palavras, em lugar de iluminarem, são encarceradas em «Index»? Tivessem todos os guardiões das ortodoxias presentes as palavras que Jesus, apesar de ser a luz do mundo [S. João, 8, 11 e 12], dirigiu à mulher adúltera — Nem eu tão pouco te condenarei…— e não teria havido nem autos-de-fé, nem fundamentalismos, nem perseguições nem prisões políticas. Sobre o arco do cruzeiro, a estrela de cinco pontas, símbolos — a estrela e as cinco pontas — de perfeição, evoca a estrela de Belém.

3. Antes de “lermos” a rosácea da fachada principal, vemos nas frestas, que a ladeiam, o anagrama de Cristo, feito a partir das duas primeiras letras — X e P — da palavra Cristo em grego — XPISTOS [o ungido]. A rosácea contém a essência da teologia cristã: a criação, a encarnação e a redenção, e toda a sua simbologia gira em torno da conhecida frase do ApocalipseEu sou o Alfa e o Ómega, o princípio e o fim, diz o Senhor [Apocalipse, 1, 8] —, livro que, mais que nenhum outro do Novo Testamento, tanta controvérsia entre os teólogos gerou. E a levar em conta a exegese “liberal”, o seu autor não é o S. João evangelista, tese fundamentada, entre outras coisas, na natureza judaica do texto: são a sinagoga de satanás os que dizem que são judeus e não o são [Apocalipse, 3, 9]. O seu autor, inspirado por Deus, (des)venda, (des)eclipsa — apocalipse: apo (fora) kalypsis (cobre) — o que não tardará a acontecer … o tempo está próximo [Apocalipse, 1, 3 ], ou seja, o fim de Roma — Ai, ai daquela grande cidade… que em uma hora foi desolada [Apocalipse, 18, 19] —, o Juízo Final e, continuando o messianismo judaico, a descida dos céus da Jerusalém celeste [Apocalipse, 21, 2 e 10], onde habitarão os eleitos. O Apocalipse é o texto escatológico, que, aliado à encarnação e redenção funda, no essencial, a mundividência cristã. Esta a síntese, que está no vitral da rosácea. Se os vitrais das naves e do presbitério noticiam o Verbo, a sua encarnação e redenção, os evangelistas e os pregadores — de que os doze Apóstolos foram os primeiros —, o vitral da rosácea não só contém todos eles como lhe ajunta o escatológico. A rosácea lembra, pela forma rotunda, o Mundo e, pela cor dominante — o azul —, o infinito. Além do círculo, contém os outros símbolos fundamentais: o centro, a cruz e o quadrado. A cruz, com seus quatro braços, abraça todo o universo, como que a dizer que, por um lado, a dor é imanente ao ontológico e, por outro, que a redenção chega a todo o lado. Ao centro, está um quadrado, no interior do qual estão as letras gregas alfa e ómega, sugerindo esta última, pelo misterioso violeta, que o cobre, o rosto de Cristo: Eu sou o Alfa e o Ómega, o princípio e o fim. [Apocalipse, 1, 8]. Assim como o quadrado [homem] se inscreve no círculo [divindade] assim Cristo representa o Verbo feito carne, Deus feito homem, habitando entre nós. [S. João, 1, 14]. Através da encarnação, o Verbo une o divino e o humano, liga o céu à terra, inscrevendo «o quadrado no círculo da divindade». [Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, Dicionário dos Símbolos, Lisboa, Círculo dos Leitores, 1997, p. 203]. Mas se no Evangelho de S. João o Verbo é, essencialmente, o originárioNo princípio era o Verbo e o Verbo era com Deus… — no Apocalipse, não só se mantém o originário como aparece o fim salvífico: Eu sou o Alfa e o Ómega, o princípio e o fim. A rosácea é, assim, um hino ao cristocentrismo: Cristo, ao centro do quadrado central da cruz [a Jerusalém celeste], que abraça e redime o Universo, e rodeado pelos doze apóstolos, simbolizados pelos rectângulos, onde habita a Palavra de Deus — a luz do Mundo —, é o princípio [Alfa] e o fim [Ómega]. E, como que a dizer-nos que o tempo histórico é finito, a rosácea, qual grande relógio da História e do Universo, "salva" o passar histórico pelo regresso da criação ao criador, lembrando a cada hora, século e época as palavras de Lucas: Coelum et terra transibunt: verba autem non transibunt (passarão o céu e a terra, mas as minhas palavras não passarão, (Luc., 21,33). Antes do início da hora da criação terrena, já as letras E-u s-o-u pré-existem, coincidindo as letras o A-l, com o A vestido de um violeta misterioso e atravessado por um amarelo divino, com o primeiro instante do tempo. Depois, as restantes letras percorrem o mostrador dos tempos: f-a e o ó-m-e-g-a, o p-r-i-n-c-í-p-i-o e o f-i-m, em letras cor de fogo, de azul de passagem para o outro lado e de eternidade, principalmente. A rosácea, quando a hora caminha para poente, é a visão apocalíptica: e todo o olho verá…[Apocalipse, 1,7]

4. Debrucemo-nos, agora, sobre a simbologia da linguagem estética utilizada: as letras. Desde cedo, elas tiveram uma natureza sagrada, porque consideradas como demiurgas e força criadora: tijolos inteligíveis, responsáveis pela construção e explicação do Livro do Mundo. Mesmo hoje, a ciência utiliza essa mesma simbologia, apesar de com natureza diferente. Assim, dizemos que as letras-código, responsáveis pelo livro da vida, são a A(denina), a G(uanina), a T(imina) e a C(itosina), e as letras do código físico do Universo são u e d (quarks base) e o e¯ e vº (leptões: electrão e o neutrino). Contudo, se as letras de todos os vitrais têm uma estrutura, que lembra o caos, as da rosácea, que estão fora do quadrado central, parecem ganhar autonomia e liberdade e, apesar da sua estruturação, aparentemente caótica, parecem transportar, no seu voo luciferino sobre o espaço e o tempo, a ordem e a inteligibilidade da escrita genesíaca. Não nos esqueçamos que toda a criação artística é luciferina e fáustica. Assim, as letras de João Vieira, na sua autonomia estética significante, também elas, se querem fazer carne: letras emaranhadas umas nas outras, quais átomos e mónadas, estruturando-se em génesis e apocalipse estéticos.

5. Independentemente do conteúdo religioso dos vitrais, nomeadamente da rosácea, as letras de João Vieira perguntam pela realidade do real: qual a origem de tudo? Qual o sentido e fim da existência? Face ao silêncio e arracionalidade do Universo e da sua polaridade trágica — Apolo/Dionisio —, a arte grega assumiu naturalmente a morte; Cristo, redimindo a criação do Pai, promete a ressurreição pascal; o messianismo político acredita na salvação histórica do homem; a ciência (des)cobre, mas os direitos de autor não lhe pertencem; a arte, face à «irrealidade histórica», segundo palavras de Octavio Paz, e à efemeridade ontológica, transforma-se em metafísica alternativa: por um lado, cria uma ontologia estética perene e, por outro, o autor conquista, através dela, a salvação do esquecimento e da morte: a eternidade. A religião não deixa, de certa forma, de democratizar a salvação e a eternidade, sendo a democracia a sua versão laica. Mas, face aos direitos terrenos e à elevação das condições materiais de vida, que a democracia trouxe a algum Ocidente, a eternidade ficou cada vez mais relegada para segundo plano. Todos os homens são tentados: a maioria pela carne, poucos pelo saber e por Deus, uma minoria pela criação. E como a arte, segundo Goethe, é uma forma de religião superior, quantos vão adorar os Vitrais da Sé de Vila Real?

6. Os Vitrais de João Vieira transmutaram a Sé: ao esforço fideísta do arco gótico arcaizante, amarrado, ainda, à pesada estrutura românica, e à austeridade e à penumbra medievais, apesar da exuberância do barroco do presbitério, junta-se, agora, o da inteligibilidade e a alegria da boa-nova, trazida em letras de luz, e a Sé, qual nau-nave, eleva-se tirada pela rosácea e frestas pandas de Verbo, cores e Luz.

Parabéns ao Bispo de Vila Real, D. Joaquim Gonçalves
Parabéns ao IPPAR
Parabéns e obrigado a João Vieira
Parabéns à Arte.

António Azevedo, Vila Real, 14 de Abril de 2003

sexta-feira, 15 de dezembro de 2006

UMA FÁBULA ENTRE DUAS HISTÓRIAS

O cego e o rapaz

De aldeia em aldeia, mendigando, conduzia o rapaz o cego. Um dia, contrariamente ao pão seco do costume, a esmola foi acompanhada de chouriça. O rapaz nem queria acreditar e, antes que o cheiro chegasse às narinas do cego, guardou-a, rapidamente, dando-lhe metade do pão. Mas, ao levá-lo à boca, o olfacto do cego apercebeu-se, imediatamente, do cheiro a chouriça, que esta tinha deixado agarrado ao carolo de pão, não fosse a perda de um ou mais sentidos compensada com o reforço da acuidade dos restantes. Desconfiado, voltou-se para o rapaz: ouve lá, que é da chouriça? Que chouriça, retorquiu ele? Não há chouriça nenhuma. Deram-nos o pão barrado com cheiro de chouriça, mas chouriça nem vê-la, defendeu-se o rapaz. O cego, apesar de nada mais dizer, ficou na dele. Uns passos adiante, por descuido do rapaz, que saboreava, um pouco afastado, a chouriça, o cego bateu com a cabeça num sobreiro. Zangado, berrou-lhe: em vez de me guiares, em que andas a pensar, rapaz? Este, ainda com a história da chouriça na cabeça e com ela já no estômago, reagiu: cheirou-te, há pouco, o pão a chouriça, mas não te cheirou, agora, o sobreiro a cortiça. Infelizmente, quem precisa, mesmo com razão, não está em posição e condição de exigir.


O lacrau e a rã

Andava um lacrau, margem acima, margem abaixo, esperando encontrar um meio que o transportasse para o outro lado do rio. Mas quando o desespero começava a ser do tamanho da sua ruindade, eis que o destino lhe colocou uma rã na margem. E dirigindo-se para a rã: os deuses trouxeram-te, junto de mim, para me transportares para a outra margem. Os deuses, perguntou ela? O destino trágico, sim. Como posso confiar em ti? Estranha pergunta, ripostou o lacrau: se, ao me levares no teu dorso, te fizesse mal, o teu mal não seria, também, o meu mal? Perante argumento tão sólido, a rã anuiu em transportá-lo. A meio do rio, a tentação foi mais forte do que ele e da sua própria sobrevivência, e injectou o seu letal veneno na prestável rã. Quando a ruindade está na massa do sangue é ela que manda, mesmo quando a própria vida está em perigo. No rio da vida, somos, muitas vezes, vítimas daqueles que ajudamos: quem sobe na vida, o passado é para branquear e esquecer. E, quantas vezes, lacraus de nós mesmos, não nos auto-injectamos de venenos mortais, não resistindo a impulsos reptilários, que, em nós, ainda, permanecem e mandam?!


Se não sabes, não bulas!

Deu entrada, na urgência, um sinistrado, com a cabeça à mostra. Levado imediatamente para a mesa de operações, o médico cirurgião, enquanto esperava pela anestesia, para iniciar a intervenção cirúrgica, olhou para a cabeça empastada de sangue e, sem pensar, comentou para os seus botões: não sei por onde começar. O paciente, julgado inconsciente pela equipa médica, recomendou, lá dos interstícios do seu inconsciente profundo, ao cirurgião: se não sabes, não bulas! Quanta gente bule onde não devia e onde não sabe!

segunda-feira, 11 de dezembro de 2006

DA POLÉMICA

Polémica, de polemos, significa luta, gerada pelos contrários, como nos ensina Heraclito. O mundo sem contradição pararia. Por isso, a alma do mundo está animada de polemos, de polémica. Empédocles vê no polemos, entre a Cólera [Neikos] e o Amor [Philia], a fonte do surgimento de «tudo o que houve, há e haverá». Os gregos colocaram o polemos, onde os judeus viram Javé e os cristãos Deus. No polemos, beberam, até à embriaguez filosófica, Hegel e Marx. Só que os sistemas acabam, sempre, por fechar e encarcerar o polemos, dentro deles. Assim, polémica que não seja geradora de algo não é polémica, é retórica e palavreado. Mas, como há quem só queira polémica por polémica, de que cedo se dá conta — não há verbo nem assunto —, também há os que, com medo dela, a tentam desacreditar, acusando aqueles que a praticam, em coerência, de alimentarem e viverem de polémicas.

O alimento da polémica não são as palavras, mas as ideias. No primeiro caso, está o palavreiro e o palavreado, no segundo, a polémica e as ideias. No primeiro caso, o palavreiro é o protagonista, no segundo, são-no as ideias. Esta a razão por que o palavreiro, grávido de soberba, anda com o rei na barriga, enquanto o polémico, esfomeado de ideias, está livre de contrair o pior dos males: a gordura mental. A luta de ideias é a correspondente, no homem, da luta ontológica, só tendo sentido quando ela vai além de fins individuais e interesseiros. Só que os estáticos e os instalados não gostam da polémica, porque, objectivamente, são uns empecilhos à evolução do mundo e da vida. Se neles actuasse a selecção natural, a realidade, com facilidade, se livraria deles. Daí que acusem a polémica daquilo que eles próprios são: palavreadores. Mas há outra espécie, não menos perigosa: aqueles que, manhosa e hipocritamente, se escondem e se demitem, sob um silêncio que tem tanto de estratégico quanto de cúmplice, mas com o ar mais virtuoso e cristão, da necessidade e imperativo da crítica e da polémica.

A polémica traz à luz a realidade, assustando aqueles cuja vida assenta no não se sabe. A polémica é uma espécie de furão: faz sair os coelhos assustados da toca, pois torna visível que o fogacho, em que vivem, tem raiz na sombra do encoste, do favor que silencia, do jeito e dos clientelismos partidários. Fala-se em liberdade de pensamento e de expressão. Mas quem tem e exerce a liberdade de pensamento e de expressão? Ontem, criticava-se a ditadura por falta de liberdade. E hoje? Quem pode falar, senão aqueles que devem a vida a si mesmos? Os partidos, qual patrão, compram a liberdade, àqueles a quem servem, como ontem a ditadura comprava a liberdade aos que a serviam e prendia aqueles que se lhe opunham. Hoje, não nos podendo prender, aprisionam-nos a vida. Deixa-os falar, murmuram. No que diz respeito à liberdade, no sentido mais elevado que ela tem, venha o diabo e escolha: a ditadura ou democracia. Na ditadura, a liberdade não existe formal nem materialmente. Na democracia, existe formal, mas não materialmente. No plano das ideias, os princípios e a coerência são uma coisa, mas, na prática, tudo é subvertido: não há princípios, não há valores, não há coerência, porque a vida é o contrário de tudo isso. Escola e educação para quê? A Escola, aquelas que ainda o são, é uma ilha. A maioria delas já está alagada. Hoje, a verdadeira preparação para a vida é a apologia da incoerência, do vale tudo e do salve-se quem puder.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2006

NÃO HÁ SEGOR PARA ONDE IR


Face à impiedade dos habitantes de Sodoma e Gomorra, o deus de Abraão confidenciou ao patriarca a sua decisão de as condenar, a elas e aos seus habitantes, à extinção e morte pelo fogo. Abraão, mais humano do que o seu deus, retorquiu-lhe: Senhor, «Quererás tu perder o justo com o ímpio?» [Génesis, 18, 23]. Prometei-me, se encontrarmos cinquenta justos na cidade, que, por amor deles, os poupareis, mais os seus habitantes. O Senhor anuiu, mas Abraão, varão justo e bom conhecedor dos homens, convenceu, sem o enfadar, o seu deus a baixar o número para dez: está bem, Abraão, se houver dez justos, eu perdoarei a toda a cidade por amor deles. Mas nem dez justos encontraram. Então, o futuro deus de Israel, mandou dois anjos a casa do justo Lot, que lhe ordenaram que, o mais cedo possível, saísse, mais a sua mulher e duas filhas virgens, da cidade, para não perecerem na maldade dela. E assim aconteceu: entrava, seguro, Lot, mais a sua família, na cidade de Segor, pela hora da descida do manto do crepúsculo sobre a Terra, quando, vindos do céu, começou a chover enxofre e fogo sobre Sodoma e Gomorra. Mas Segor, como todas as utopias, foi refúgio breve. Hoje, chovem, pelos mesmo lugares, mísseis inteligentes, vindos do mar. A história das Babilónias confunde-se com a história dos deuses: emigraram para Ocidente.

Com o critério do deus de Abraão, quantas cidades sobreviveriam, hoje? E, se houvesse um deus, que dissesse a cada cidade: apresentai-me dez justos e eu a pouparei, quantos Lots apareceriam? Os ímpios subverteram os deuses e em vez de serem eles a enviar os seus anjos a Lot, salvando-o da destruição da cidade, são os ímpios dos bons princípios, das boas maneiras, das influências, que expulsam o justo da vida e a sodomizam. Só os justos são injustos na exigência que fazem aos deuses: que, por amor deles, poupem os injustos. O justo é o mais temido pelos ímpios, porque conhece e combate a “tumografia” da cidade.

Não há Segor para onde ir, porque, ao contrário da mulher de Lot, não olharíamos para trás.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2006

A PROPÓSITO DE PARECENÇAS



O nascer é, para quem nos espera, como se viéssemos do nada e não tivéssemos quase um ano de vida. Ninguém nos pergunta pela nossa estadia e habitação uterinas. As novas tecnologias não tardarão a possibilitar que os pais possam acompanhar visualmente a fase embrionária. A primeira preocupação, de quem nos recebe no átrio da vida, é saber se somos perfeitinhos e a quem nos saímos: tem aparecenças com a mãe; é a cara chapada do pai. É no início e no fim da vida que as parecenças são maiores: às parecenças físicas da nascença sucedem e juntam-se, com a entrada na segunda fase da vida, as parecenças comportamentais. Quem já não se confundiu, assustado ou assustada, com o seu próprio pai ou mãe? Sucede-me, por vezes, olhar-me ao espelho e estar lá outro: o meu pai. E tenho uma sensação estranha.

Mas as parecenças não acabam aqui. Ao longo da vida, não há ninguém que não tenha sido confundido com o seu outro, que não conhece e, mesmo que conhecesse, nele não se reconheceria. Todos têm o seu sósia: não o seu irmão biológico, mas estatístico. As combinações genéticas, ao tenderem para infinito, geram, necessariamente, sósias. Esta questão não deixa de estar presente na teoria do eterno retorno, que Raul Proença tratou nos seus dois volumes do Eterno Retorno. É no Capítulo VI do primeiro volume que a hipótese e natureza desse retorno são, especificamente, tratadas, sob duas modalidades possíveis: o retorno da identidade numérica e o retorno da identidade específica. A primeira — retorno da identidade numérica —, além do retorno cosmológico, conteria o retorno da singularidade do eu, a ressurreição individual numericamente idêntica e o valor escatológico; a segunda — retorno da identidade específica —, traduzir-se-ia por um retorno infinito de outro(s) Sócrates, mas como sósia(s) cosmológico(s) do mesmo. Esta pode ter valor cosmológico, mas, continua Raul Proença, «perderia inteiramente toda a sua significação escatológica: não teríamos diante de nós uma doutrina da ressurreição». [Raul Proença, ibidem]. E porque o eterno retorno nietzschiano “fica” pelo retorno da identidade específica (cosmológica), merece, a Raul Proença, o seguinte veredicto: «Zaratustra trouxe aos homens uma promessa desencorajante. [...]. Prometeu-nos repetirmo-nos.[...]. Prometeu-nos a eternidade, mas deu-nos, quanto a nós, uma eternidade ilusória... [...]. Zaratustra mentiu-nos! Abandonemos, pois, Zaratustra»! [Raul Proença, Ibidem].

Voltando às parecenças: ó homem, você é parecidíssimo com Saramago! Quando o vi, pensei mesmo que era ele. Perdão, atalhou ele. O Saramago é que é parecido comigo. Consigo? Interrogou o outro, incrédulo. Pois claro, comigo. Com quem havia de ser? Não sou mais velho do que ele? Não acha que é o filho que se parece com o pai e não o pai com o filho? O incógnito homem, que ninguém conhece nem conhecerá, não se quis ver confundido com Saramago, apesar de célebre e mundialmente conhecido. Saramago, porque mais novo, é que se deve parecer com ele. Num tempo em que poucos gostam de si e em que muitos imitam esta ou aquela figura pública ou dela são fãs, quantos não ficariam satisfeitos, se alguém lhes descobrisse parecenças físicas, ou outras, com alguma celebridade? É caso para dizer: quem não o pode ser, quer parecê-lo. Mas o nosso homem não: antes quer ser ele, simplesmente, do que parecer outro, celebremente. E como está certo!

domingo, 3 de dezembro de 2006

DA INVEJA

Nada possuamos, para que não nos invejem nem a morte nos desejem. Tudo e em tudo sejamos, para que a morte não possa connosco e Osíris não nos peça contas, quando a alma nos pesar. Há que matar a morte com o peso de ser. O ter, por mais pesado que seja, a morte o leva, folgada. Banquetear-se-á a morte com o nosso corpo, banquetear-se-ão os homens com os nossos bens, mas a alma do ser, se a tivermos, nem a morte nem os possessivos tocarão. A alma é o que se é e só tem alma aquele que é. Os encorpados e possessivos são desalmados. Fenecerão de corpo, os bens passarão e os deuses condená-los-ão ao esquecimento. O Egipto demonstrou que o corpo não tem salvação. A Grécia que a divindade e a eternidade estão na estética. As gerações que os bens não têm donos. O santo é, o poeta é, por isso, eternos: eternamente na alma daqueles que não são ou não podem ser tanto como queriam e desejariam. O bilhete para a eternidade não se pode comprar em qualquer editora ou loja metafísica. Os simples são uma espécie de santidade natural, distantes das doenças do «mundo humano». Há uma santa simples, que, acima de todos os deuses, adoro: minha mãe.

Existem duas espécies de inveja: a do ter e a do ser. A primeira faz parte da essência do mundo das coisas. A maioria dos invejados não só gosta de o ser como não olha a meios para passar de invejoso a invejado. No mundo do ter, o objectivo principal e final de vida é possuir e nunca ficar atrás do vizinho. Todos concorrem para ter mais do que outro e para fazer ver ao outro, saboreando o invejado, como aquilo que possui, a visão da mó da inveja a moer o invejoso. Tão ou mais importante que o ter é que o outro não tenha mais que nós. A inveja, neste aspecto, passou a ser o motor do consumo, levando a ter o que se não precisa e a gastar o que se não tem. No mundo do ter, possui a inveja invejados e invejosos: inveja o primeiro que o outro possa ter mais do que ele, inveja o segundo o que o outro tem. Invejar é in-ver: «olhar demasiado para aquilo que é dos outros». A inveja é profunda entre vizinhos ¬– vemo-nos, no ter, amiúde – e atenuada entre estranhos. Alimenta o invejoso o seu não-ter, «olhando demasiado» o que é dos outros, mas como o in-ver não se converte em posse, o resultado é o sentimento de desgosto por não ter bens iguais ou superiores aos alheios. O curioso tem os olhos nos dedos, o invejoso nas coisas alheias.

Outra a inveja do ser. Inveja esta não o que se tem, mas o que se é. São as duas invejas imunes, entre si, mas ambas trituradoras, na sua esfera. Diremos mesmo que a segunda é mais dolorosa, porque do domínio ontológico. Invejam os génios os deuses, os talentos os génios, os medíocres os talentos. A inveja do ser é in-ver demasiado o que o outro é. É inveja da eternidade daqueles que a conquistam e desgosto de sabermos que morremos, como castigo por trocarmos o ser pelo ter ou por incapacidade nossa de aceder ao eterno.

sábado, 2 de dezembro de 2006

DA LUCIDEZ

Olhando retrospectivamente, confesso que os meus estados de maior cegueira estiveram acertados com a hora das minhas maiores certezas. Aprendi que a cegueira maior é julgar que temos a razão. O maior inimigo da razão é o militante racional, porque tende a impô-la aos outros. O maior inimigo da democracia é o militante partidário, porque sonha sempre com maiorias absolutas. O maior inimigo do sentimento religioso é a igreja, porque faz da outra uma heresia e do seu seguidor um infiel. O que rege o mundo e o faz correr é a cegueira, mas só o lúcido é fiel à luz. Sabendo que o erro, mais cedo ou mais tarde, viria ao seu encontro, o lúcido não se fixa. Vive na errância. Cegou Édipo a cegueira de ver o proibido. Não queiramos ver o que ainda a luz não viu, se o que ela nos mostra não vemos. Distantes da cegueira socrática, pela verdade, e do relativismo oportunista dos sofistas, os estóicos viram a lucidez e transformaram a filosofia numa religião sem deuses: o maior dos males é o (ex)cesso e o maior dos bens a felicidade serena.

Lúcido é aquele que, vivendo serenamente acima das igrejas, das ideologias e das razões, é iluminado por todas as perspectivas, não ficando cego por nenhuma. Cegueira é ver uma coisa acima de todas as outras. Amor é cegueira, porque não deixa ver para além da coisa amada. Lúcido o que vê o seu ângulo como apenas mais um. Lúcido o que, concretamente, está centrado, e, abstractamente, descentrado. Lúcido o que está lateralmente dentro. Lúcido o que sai da espécie para a ver de fora, porque de espécie diferente. A verdade não é angular, nem a soma de todos os ângulos. Somar perspectivas significa somar o contraditório. Lúcido o que (re)conhece que todos estão certos, mas nenhum verdadeiro. Cego é o que faz do seu canto o centro do mundo. A maior cegueira não é a física nem a do ignorante, mas a daquele que as ideias cegam, em lugar de iluminarem. Quem bulha por ideias não as respeita e redu-las a botões ou berlindes. Alguém já ganhou uma discussão? E, se a ganhou, o que ganhou com isso? Discutir e pretender ter razão é um acto agressivo e possessivo como outro qualquer. Lúcido o que, sem ignorar, é ignorante, o que, sem nada saber, é sábio. Lúcido é luz branca. Cego o que confunde a cor, onde está, com a luz.

Lúcifer teve a lucidez de ver em Deus a negação de Deus, porque impeditivo do nascimento de um Deus maior. Contudo, perdeu a lucidez, quando se revoltou, porque o lúcido não se revolta. O mesmo sucedeu a Deus, que, porque revoltado, criou o inferno, onde o precipitou. À revolta, responde-se com revolta. À luz, não podemos fazer frente: cega-nos. Só dos lúcidos os deuses têm temor, porque os olham como eles são e não como os homens os vêem. Todo o que carrega a luz carrega leveza e calma, dissolve a escuridão e ilumina os limites. Lúcido é ser luz: ilumina, mas deixa a explicação para os outros; desvenda o rosto do ser, mas a visão não lhe pertence. O que explica o olhar é a luz e não o contrário. Se viver, segundo a verdade, é transformar a vida num inferno, ser e estar lúcido é dar conta de que o inferno é a própria vida e de que a mentira, como meio de sobrevivência e concorrência, faz parte dela. A verdade aprisiona-nos, a lucidez é uma espécie de limbo, para além do verdadeiro e do falso e do prémio e do castigo. O lúcido não visa possuir ou corrigir o mundo, mas iluminá-lo: quem pretendeu corrigir e salvar o mundo tornou-o, sempre, num inferno ainda maior.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2006

DIMENSÕES



A realidade tem várias camadas e cada uma delas as suas dimensões. Nós habitamos num T4 dimensional: ao comprimento, largura e altura cartesianos acrescentou Einstein o tempo. Que muitos arquitectos e engenheiros têm em pouca consideração, pois fazem as coisas de tal modo acanhadas, que, passado pouco tempo, ninguém cabe nelas. Vejam-se as ruas da Cidade e os Itinerários Principais que, não tendo sido feitos com a dimensão do tempo, mais se parecem, poucos anos volvidos, com quelhos apertados e estradas de segunda. Mas o estranho é que, à medida que caminhamos para o infinitamente pequeno, mais dimensões são necessárias. O infinitamente pequeno vive em tal irrequietude, incerteza e ubiquidade que precisa, dizem os físicos das partículas e os modelos matemáticos, não de quatro, mas, imagine-se, de onze dimensões! Já imaginaram um electrão a habitar um T11? Cabe lá uma criança numa casa! Uma criança só cabe na rua! O quantum, seja de espaço, de tempo, de matéria, de energia é o que faz a diferença entre 0 ou 1, entre tudo ou nada.

Mas voltemos ao nosso mundo, à nossa condição e dimensão humanos. Se o tempo cósmico é só um, no mundo humano, há dois tempos: o tempo da nossa vida e o tempo histórico. Na carruagem da História há, independentemente da economia e da classe em que se viaja, duas classes e dois tipos de passageiros: os que perguntam pelos horários dos Caminhos de Ferro da História e os que sabem de cor e salteado, e por aqui ficam, os horários dos caminhos da sua vida. A Linha do Douro, para muitos, começa e acaba entre os apeadeiros em que se movimenta o seu existir. Não há cais nem portos, não há Barcas de Alva nem S. Bentos. Felizes os que, ao som da concertina, vão nas mãos do maquinista do Destino, como se levados pela mão por um Deus! Quem vai nas mãos do Destino bem vai. Bem pior está aquele que o perdeu. Apesar de todos termos tomado o comboio da vida no mesmo Entroncamento da História, os bilhetes, os horários e o destino de cada um são bem diferentes. Desculpe, quantos anos tem? Os anos do Universo e da vida. Como?! E você? Sessenta, feitos. Ninguém lhos dá. Para a maioria, a vida decorre consciente no plano individual, mas inconsciente, no plano histórico-civilizacional. Fora da sua vida e do seu contexto, nada mais há. Civilizacionalmente, a maioria vive no presente. Não há passado nem futuro, para além deles. Esta maneira de estar na vida assemelha-se, em muito, à criança, para a qual a vida é um eterno presente. Esta a chave da felicidade da criança. Aquela a chave da felicidade dos adultos. Mais do que este ou aquele regime político, mais do que com liberdade ou sem ela, o que torna a Civilização e a História possíveis é esta inconsciência feliz. Há duas coisas que nos fazem destemidos: a ignorância e a inconsciência. E quando multiplicadas por multidões fazem exércitos imparáveis.

Epocalmente, contemporâneos, civilizacionalmente, extemporâneos. Qual o seu apeadeiro? Alfarelos! E qual o seu destino? Perdi-o, como quem perde o comboio.