segunda-feira, 11 de dezembro de 2006

DA POLÉMICA

Polémica, de polemos, significa luta, gerada pelos contrários, como nos ensina Heraclito. O mundo sem contradição pararia. Por isso, a alma do mundo está animada de polemos, de polémica. Empédocles vê no polemos, entre a Cólera [Neikos] e o Amor [Philia], a fonte do surgimento de «tudo o que houve, há e haverá». Os gregos colocaram o polemos, onde os judeus viram Javé e os cristãos Deus. No polemos, beberam, até à embriaguez filosófica, Hegel e Marx. Só que os sistemas acabam, sempre, por fechar e encarcerar o polemos, dentro deles. Assim, polémica que não seja geradora de algo não é polémica, é retórica e palavreado. Mas, como há quem só queira polémica por polémica, de que cedo se dá conta — não há verbo nem assunto —, também há os que, com medo dela, a tentam desacreditar, acusando aqueles que a praticam, em coerência, de alimentarem e viverem de polémicas.

O alimento da polémica não são as palavras, mas as ideias. No primeiro caso, está o palavreiro e o palavreado, no segundo, a polémica e as ideias. No primeiro caso, o palavreiro é o protagonista, no segundo, são-no as ideias. Esta a razão por que o palavreiro, grávido de soberba, anda com o rei na barriga, enquanto o polémico, esfomeado de ideias, está livre de contrair o pior dos males: a gordura mental. A luta de ideias é a correspondente, no homem, da luta ontológica, só tendo sentido quando ela vai além de fins individuais e interesseiros. Só que os estáticos e os instalados não gostam da polémica, porque, objectivamente, são uns empecilhos à evolução do mundo e da vida. Se neles actuasse a selecção natural, a realidade, com facilidade, se livraria deles. Daí que acusem a polémica daquilo que eles próprios são: palavreadores. Mas há outra espécie, não menos perigosa: aqueles que, manhosa e hipocritamente, se escondem e se demitem, sob um silêncio que tem tanto de estratégico quanto de cúmplice, mas com o ar mais virtuoso e cristão, da necessidade e imperativo da crítica e da polémica.

A polémica traz à luz a realidade, assustando aqueles cuja vida assenta no não se sabe. A polémica é uma espécie de furão: faz sair os coelhos assustados da toca, pois torna visível que o fogacho, em que vivem, tem raiz na sombra do encoste, do favor que silencia, do jeito e dos clientelismos partidários. Fala-se em liberdade de pensamento e de expressão. Mas quem tem e exerce a liberdade de pensamento e de expressão? Ontem, criticava-se a ditadura por falta de liberdade. E hoje? Quem pode falar, senão aqueles que devem a vida a si mesmos? Os partidos, qual patrão, compram a liberdade, àqueles a quem servem, como ontem a ditadura comprava a liberdade aos que a serviam e prendia aqueles que se lhe opunham. Hoje, não nos podendo prender, aprisionam-nos a vida. Deixa-os falar, murmuram. No que diz respeito à liberdade, no sentido mais elevado que ela tem, venha o diabo e escolha: a ditadura ou democracia. Na ditadura, a liberdade não existe formal nem materialmente. Na democracia, existe formal, mas não materialmente. No plano das ideias, os princípios e a coerência são uma coisa, mas, na prática, tudo é subvertido: não há princípios, não há valores, não há coerência, porque a vida é o contrário de tudo isso. Escola e educação para quê? A Escola, aquelas que ainda o são, é uma ilha. A maioria delas já está alagada. Hoje, a verdadeira preparação para a vida é a apologia da incoerência, do vale tudo e do salve-se quem puder.