quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

CAVAVO E SÓCRATES: OS GRANDES TIMONEIROS

Corre, por aí, em escritos e ditos, que Sócrates não é de direita nem de esquerda, é engenheiro sanitário. Antes o fosse. Socorrendo-nos da lógica, estaremos mais certos se concluirmos que Sócrates é formalmente engenheiro sanitário e materialmente político. A não ser que se trate de alguma metáfora: o país ser comparado a uma ETAR e, então, nada melhor do que um engenheiro sanitário para o tratar. Mas, fora tudo isso, a verdadeira profissão de Sócrates é ser político. Aqui é que teve o sucesso que nunca tivera nem teria como engenheiro sanitário. Sócrates, sem a orfandade da direita, que se sucedeu a Cavaco, sem a fuga de Durão, o “dandismo” político de Santana e a alegria de Portas, não só não tinha chegado com facilidade ao poder, e, a chegar, nunca com maioria absoluta, como não teria passado de um desconhecido engenheiro sanitário de qualquer câmara socialista ou laranja, tanto lhe daria e faria, como mais um funcionário público. E Cavaco, caso não fosse a necessidade de fazer a rodagem ao carro, nunca chegara a primeiro-ministro e muito menos a Presidente da República e, sem ele, o País não teria, claro, alcançado a velocidade de cruzeiro de desenvolvimento que a prise política de Cavaco imprimiu na sua consular década. Portugal é um país de lotaria e a política não foge à regra. Com uma diferença: a eles saiu-lhes a sorte grande da política, o de conseguirem ser alguém, pela política, a nós, em contrapartida, o azar.

Serve tudo isto como intróito àquilo que leio nos jornais: as últimas sondagens dão Cavaco encavalitado lá em cima, Sócrates a alcançar-lhe os pés na escada das sondagens, o governo mau e a oposição pior. Cavaco, como todos os presidentes, está no top: ele é esperança, ele é auto-estima nacional, ele é mais valia política, ele é a boleia para o desenvolvimento, ele é o tudo que é nada. Sócrates, engenheiro sanitário, deputado apagado, ministro do ambiente responsável pelo aquecimento local que a co-incineração originou, comentador ao lado, ao nível e a par de Santana, ei-lo, miraculosamente transfigurado em grande estadista, graças ao milagre das maiorias absolutas, que transformam o ninguém em alguém! Que seria de nós, sem estes dois homens? A não ser eles, ninguém se salva: ministros, governo e oposição. Eles, sim, têm ideias e projectos para Portugal, melhor, eles são as Ideias, eles são o Projecto, eles são Portugal! E se um imita Albuquerque o outro, não querendo ficar a trás, quer logo ser Marco Pólo. Onde estão os analistas e os comentadores para nos explicarem tamanha contradição: governo e oposição pelas ruas da amargura e eles em alta! Que sonda a das sondagens que coloca o governo às portas dos infernos e o seu responsável e maestro à entrada dos céus? Eureka: se com estes dois timoneiros, a coisa continua tão mal, não mereceriam eles outro País? Confesso-vos que já me doía a cabeça de não saber resolver esta contradição! E logo esta que, em lugar de dar à luz, dá escuridão.

O erro capital da nossa política reside na pessoalização da mesma. Este o grande défice da nossa cultura política. Só sairemos da crise, se sairmos, se o País se merecer a si mesmo, se expulsar os sebastiões e eleger quem eleja a nação como protagonista principal. A nossa política está contaminado de religioso: a salvação nossa e do país não passa pela mobilização nacional, mas por alguém que nos venha salvar! Esta a explicação para Salazares, Cavacos e Sócrates e o que mais virá. E se verá.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

INTELIGÊNCIA AZUL

Espantados com o título de hoje? Socorri-me desta metáfora por associação àquela que todos conhecem: «sangue azul». Até a burguesia ter posto fim ao sangue azul, a nobreza, porque incomunicável com outras classes, salvo os bastardos, tinha-se na fama e no proveito de que o seu sangue, embora vermelho corresse, diferente era: era azul. Contudo, o nobre, ao contrário do puro-sangue, que mantém a raça, a garra e a animalidade, degenerou cansado de tanto azul. A consanguinidade e as classes dirigentes são degenerativas. O mesmo cansativo. Sem o refrescamento com o sangue do povo, não teria havido Mestre e em lugar da «ínclita geração» bem poderíamos ter tido uma geração de definhados. E sem Infantes como partir de Sagres, chegar ao «Longe» e vencer a «Distância»? A causa do esgotamento da nobreza residiu no facto de não ser a hereditariedade biológica a suportar a hereditariedade social, mas ao contrário. Contudo, alguém pode retorquir: e a burguesia?! Tem razão, a burguesia começou como revolucionária e acabou como reaccionária. Começou como europeia e acabou como americana. Começou como utopia e acabou como império. Começou como razão e acabou como unto. E o povo? Bem, o povo é, mais uma vez, a reserva para outra coisa que não sabemos bem o que vai ser. E ainda bem. O povo é o inferno magmático social que, explodindo, renova a crosta da vida. Mas o problema é que também ele se está a esgotar.

É altura de cumprirmos o título. E estou mesmo já a ouvir perguntar: mas que diabo de inteligência azul é essa? Uma autêntica nobreza de pensamento. Esta espécie de inteligência, contrariando a lei inexorável da estatística – «a lei da regressão para a média» –, que impede que um génio não gere senão genialidade e o imbecil senão imbecilidade [caso assim não fosse, há muito que a espécie homo sapiens se teria partido em duas: a dos génios (homo sapientissimus), evolutiva, e a dos imbecis (homo imbecillis), degenerativa], esta espécie, dizíamos, gera inteligência azul, hereditariamente. A inteligência azul é um puro-sangue de massa crítica: o filho é sempre a continuação, senão o melhoramento, do pai e o neto, não contente, bate pai e avô. Isto, sim, que é concorrência! Esta espécie, rara, apareceu em algumas Universidades, graças à autonomia e independência pedagógicas, que, qual adubo do espírito, aliado à fortíssima selecção cultural a que a escolha e o convite obrigam, originou uma mutação neurofisiológica, responsável pela emergência desta nova aristocracia do pensamento. E não é que esta espécie vingou de tal maneira que se transformou numa elite cultural que, todos esperam, irá alimentar a nossa intelligentsia nacional, quando, há muito, teria «levado caminho», se sujeita à selecção natural?

Esta nova nobreza intelectual teve tanto sucesso que já encontramos três gerações de inteligência azul a concorrer entre si: pais, filhos e netos!, e não é raro vermos, também, marido a concorrer com mulher! Frutos? A inteligência azul, seja por autodefesa, seja por instinto, seja por outra razão ainda desconhecida, não só não frutifica para fora como não dá possibilidades aos que não são da família. Mas, ao que se ouve, a estufa começa a estar estafada e estufada.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2007

FRONTALIDADE E COBARDIA

A escrita é ex-posição. Esta a razão por que ela nunca poderá ser acusada de cobardia e o artífice de covarde. A crónica, seguindo e segundo a sua natureza, é uma escrita frontal e de frontalidade, porque se dirige ao poder, melhor aos seus agentes, seja qual for a sua natureza, questionando-o e questionando-os. A crónica, se elevada e não descendo ao ataque pessoal, como deve ser, é uma forma de intervenção cívica e de cidadania e um exercício de liberdade e de livre expressão do pensamento. Liberdade de expressão e pensamento que muitos se demitem de a exercer e que a maioria dos políticos e aparelhistas não gostam, porque a sua argumentação é, por regra, a força do poder. Na nossa democracia, formal e fortemente partidarizada, a liberdade de expressão e pensamento, em lugar de ser vista como um elemento de vitalidade democrática, é olhada de lado e como um auto-suicídio. Não admira, assim, que a liberdade de expressão e pensamento tenha custos elevados e, como na ditadura, continua, sob uma forma indirecta, mas eficaz, a ser proibida. Quem se atrever a exercê-la é condenado a ficar só na rua e na vida, principalmente em meios provincianos, onde a pressão é maior e o caciquismo, inclusive o cultural, sobrevive e campeia. O que não entendo é como há gente que abdica, para proveito próprio, de exercer, como cidadão, a liberdade de expressão e de pensamento, ao mesmo tempo que quer morar na criação. Como cidadãos, castrados, como criadores, augustos. Vivem no silêncio estratégico, com uma parte do rabo dentro e com outra de fora, para não se comprometerem.

Como ontem, os políticos, seus aparelhos e gente que os serve não gostam de um «espaço público» de discussão democrática, confundindo cidadania activa com ataque pessoal. E não nos podendo liquidar pela argumentação nem por argumentos sejam eles o argumentum ad hominem, em que todos podemos incorrer, o argumentum ad crumenam, sua prata da casa, ou o argumentum baculinum, que a direita trauliteira tem sempre à mão, respondem-nos com o argumento fraco dos duros: o amuo, o deixarem-nos de falar, a crítica nas costas, mas não vendo, entre eles, as suas. O que seria desta gente fora do poder? E não contentes, ainda, descem desonesta, covarde e facilmente ao rótulo ético, arrumando as pessoas em boas e más: as boas aquelas que fazem parte do seu clã e os bajulam e servem; as más aquelas que, pertencendo ao eixo do mal, não estão para isso. E à ousadia de pensar, que não ousam, chamam-lhe nomes: a mania de dizer mal. Estar entre iguais é bem mais difícil do que ter, em baixo, uma assistência sempre a bater palmas, de que tanto gostam. Como, em plena luz do dia, anda para aí gente com o lampião dos outros nas mãos para ver se a vêem melhor!

Mais do que ser hera ou estar rodeado por heras, para ganhar protagonismo ou de mim se servindo, mais do que uma multidão no dia do meu funeral, por obrigação e por gente que me rogou pragas para morrer, e que nunca de mim mais se lembrará senão para se regozijar – já lá estás, há mais tempo tivesses ido! –, quero, acima de tudo, estar bem comigo, hoje como ontem, e com o futuro, se o merecer.

sábado, 17 de fevereiro de 2007

“QUADRO DE HONRA” PARA PROFESSORES

A ministra regente da educação, a sr.ª Maria de Lurdes Rodrigues, com respeito pela regente que tive no tempo da ditadura, depois do primeiro acto – o ter voltado a opinião pública contra os professores, responsabilizando-os de tudo o que de mal está na escola pública e amesquinhando-os publicamente, branqueando, assim, toda a política educativa do “centrão”, feita e desfeita por trinta anos de reformas e contra-reformas, ao prazer deste e daquele ministro da educação (dois exemplos actuais: a desvalorização da filosofia e a polémica sobre a TLEBS, que, como no passado, faz dos alunos cobaias, e sem uma palavra da ministra) e de uma péssima formação de professores de que os diferentes ministros da educação e respectivas Universidade são os principais responsáveis – depois do primeiro acto, dizíamos, encena o segundo: para o melhor da Turma de 140 mil, um prémio monetário – 25 mil euros, cinco mil contos em moeda antiga! Depois de “acanalhar” os professores, o rebuçado para o melhor da Turma! Maria de Lurdes reúne, além de outras, duas virtudes: à maneira “inferior” como muito do ensino superior olha os ensinos básico e secundário junta a «razão do poder», suportada em tudo o que é Grande Imprensa falada e escrita. A notícia do Público, sobre o “quadro de honra”, era suportada por uma “caixa” jornalística e pelos “exemplos” do ensino público americano (degradado!) e do inglês, que para lá caminha. Como era interessante saber o curriculum escolar da ministra e de Sócrates, entre outros, e ouvir os seus professores para sabermos que traumas e recalcamentos estão na origem deste comportamento. Ora, aqui está um bom tema de investigação psicanalítica!

E se não nos espanta a comédia – escolher o melhor professor entre 140 mil e de áreas e sectores tão diversos! –, espanta-nos, sim, ver Daniel Sampaio prestar-se, como presidente do júri nacional, acompanhado de Roberto Carneiro, de António Nóvoa e de Isabel Alarcão (tudo gente superior e/ou do superior!), a fazer parte do teatro, quando o que o júri devia investigar era não só a razão por que a excelência está arredada das escolas, mas também as políticas educativas do “centrão” e os ministros delas e por elas primeiros responsáveis. Mas nada que já nos espante: se o psiquiatra Lobo Antunes se passou, com toda a naturalidade, de Sampaio para Cavaco, como Daniel não aceitar o convite de Maria de Lurdes, sem precisar de se passar? Como é, no mínimo, sadismo político colocar Roberto Carneiro num júri nacional que pretende trazer a excelência às escolas, quando ele é um dos maiores responsáveis pela sua quebra e partida: a abertura do ensino superior privado sem regras, nem rigor (onde muitos políticos do centrão tiraram ou acabaram os seus cursos, escudados na política), orientando-se, na maioria dos casos, pelo economicismo. E quanto a António Nóvoa – reitor da Universidade de Lisboa – o seguinte: aquele que, entre outros (reitores das Universidades), não teve resposta à altura, no programa de «prós e contras», na RTP 1, para combater a crítica feita pelo “assessor” do ministro Mariano Gago, o professor Luís Moniz Pereira, investigador da área da inteligência artificial – os reitores têm andado a «coçar as costas» (mutatis mutantis), em lugar de reformarem as Universidade –, é o mesmo que é escolhido para dar cobertura às costa da ministra: as costas grandes continuam a ser as do ensino “inferior”!

Como a afirmação da ministra – «devolver ao País a excelência da actividade profissional dos professores» – e o meio apontado para o conseguir fazem, apesar dos acompanhantes no cortejo, de um assunto sério, digno e elevado, uma anedota! E por que não Mariano Gago propor um “quadro de honra” para cada Universidade para sabermos, também, da excelência de Maria de Lurdes? E de outros. Muitos...

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

As palavras e nós

«Catano, nunca mais sou atendida!», ouço uma senhora a resmungar, numa mesa do café, mesmo ao lado da minha. Até que enfim ouvi uma palavra que não ouvia nem dizia há muito: catano! Ouvir e pronunciar uma palavra, há muito esquecida, é como ver alguém que não víamos há anos. Demoramos sempre algum tempo a reconhecê-la. As palavras, como nós, também envelhecem e deixam de ser precisas. Contudo, elas ainda ficam no dicionário. E nós ficamos aonde? Que será feito da nossa memória, quando os nossos netos se esquecerem de nós? Quem nos vai reconhecer num álbum, que alguém encontre no sótão do tempo? Como a “memória eterna”, que lemos numa campa, tem a brevidade das flores que nela colocam! Memória e flores, a mesma brevidade. Catano, que não valemos nada!

sábado, 10 de fevereiro de 2007

ALGUÉM, ZÉS-NINGUÉM E IMPORTANTES

A nossa importância mais não é do que o meio, interesseiro, que os outros utilizam para ganhar a sua própria importância. Depois, esquecem-na: quem sobe na vida não gosta de olhar para trás. O passado é para esquecer e rejeitar. E a sua importância depressa substitui aquela que o ajudou a ser importante. Só nos dá importância quem precisa de nós. Fraca a importância que assenta em precisados. Ser importante é, de certa forma, ser útil e, para “utilizar” a importância dos outros, há mil manhas, destacando-se a adulação e a falsa amizade. Como está senhor doutor?, ouvi eu, vezes sem conta, a pessoas que, ao entrarem no restaurante, deste modo, cumprimentavam uma personagem que nele se encontrava. É certo que os meios pequenos potenciam as figuras importantes, mas a maioria gosta do estatuto de importante, mesmo sabendo que está a ser utilizada e que amanhã, quando não precisarem deles, é como se já não existissem. Há mesmo aqueles que só vão a restaurantes onde são tratados por doutores, engenheiros ou arquitectos, mesmo não o sendo. Quem não é não se resigna e tudo faz para parecer que é. Parafraseando Camões: mais vale sê-lo do que parecê-lo, mas pareça-o quem não pode sê-lo. Se todos fossem cidadãos e a cidadania uma prática, a importância e os importantes extinguir-se-iam. Há importantes, porque há zés-ninguém. Além e acima do importante e do zé-ninguém, está o alguém, sem a soberba do importante e a manha do zé-ninguém. Mas, num meio de importantes e zés-ninguém, é difícil ser-se alguém.

Em lugar de pensarmos em ser importantes, devíamos, antes, preocuparmo-nos em sermos alguém, porque ser alguém é bem mais importante do que a importância. O fim do importante e do zé-ninguém é o fim da utilização do outro, da adulação, da inveja, dos mal agradecidos, dos bem agradecidos, dos favores. Numa sociedade culta e evoluída, à importância não lhe é dada qualquer importância e, aos direitos e à cidadania, a máxima importância. Pobre da sociedade, como a nossa, que é, regra geral, constituída, por importantes, alguns, e, maioritariamente, por zés-ninguém. Como tudo seria diferente, se a maioria fosse alguém. O importante é-o por fora e, mais cedo ou mais tarde, deixará de ser importante, mas o ser alguém é algo de intrínseco.

O importante não vale pelo que é, mas pelo que pode, o zé-ninguém pouco ou nada vale, porque não é, não tem nem pode, o alguém vale, essencialmente, pelo que é. O importante é invejado e utilizado, o zé-ninguém esquecido e posto de lado, o alguém receado e respeitado.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

SANTA LUZIA, SÃO BRÁS E SÃO LÁZARO

Na santidade, também, há hierarquia. Não há sete céus? E se cada um fosse passar a eternidade no andar correspondente ao seu grau de santidade, quantos daqueles que, no aquém, vivem nos andares de luxo e em ricas vivendas não iriam habitar o rés-do-chão celestial? Além dos dias santos de guarda, reservados para Deus e santos principais, todo o dia tem o seu santo, mas não de guarda, porque, se assim não fosse, a religião teria sido, há muito, a primeira a superar o trabalho. Ficou-se pela superação do trabalho e dos trabalhos, no além. Dantes, quando não havia medicina, pobres e ricos recorriam aos santos para os livrarem dos males e maleitas que tanto os afligiam. Quer queiramos quer não, a medicina tem sido a maior causa de esquecimento a que os diversos santos foram votados, apesar de terem sido, durante milénios, os intermediários entre Deus e nós. Até a religião não escapa ao poder científico-tecnológico. Hoje, só em casos extremos, os homens se voltam para Deus. Antigamente, os pobres, mais achacados a maleitas de todo o género e, ainda, sem medicina, socorriam-se da divina, através do santo respectivo. Por altura da Peste Negra, São Roque, a peste da peste – Ero pestis tua, o pestis, como escreve Vieira – devia ter batido Deus e Maria, em protagonismo, tal a invocação de que foi alvo, por parte dos pestilentos, que os havia às centenas de milhar por essa Europa fora. Quem reconhece hoje, São Roque, com o cão a lamber-lhe a ferida, provando que a saliva tem poderes curativos? E como não há ninguém que lamba as feridas, mesmo o próprio ao próprio, quem havia de o fazer senão o cão, esse amigo mais amigo do que o próprio homem? E, face ao mal das goelas, lá estava São Brás, perante Deus, como advogado dos sofredores da garganta, que longe se estava de pensar que um dia haveria otorrinolaringologistas.

Das doenças da vista, tratava Santa Luzia e das bexigas São Lázaro. A “gancha” é a receita que São Brás dá para nos livrarmos do mal das goelas, o doce de calondro dos famosos “pitos” a medicação de Santa Luzia, para a vista, e os “cavacórios” de São Lázaro, para combater as bexigas. Como esta farmácia era bem melhor do que a actual! Muito desta farmacopeia continua viva, graças à Casa Lapão. Os doces típicos de Vila Real estão, assim, ligados a santos de devoção popular: a Santa Luzia, que se venera em 13 de Janeiro, os “pitos”, a São Brás, com seu dia a 3 de Fevereiro, a “gancha”, a São Lázaro, com festa móvel, porque sempre em função da Páscoa – Lázaro, Ramos e na Páscoa estamos –, o “cavacório”. Os “pitos” e as “ganchas” dizem bem do erotismo de que eram rodeadas as festividades em honra de Santa Luzia e de São Brás e da linha ténue que separa o sagrado do profano. Durante a Idade Média, e mesmo depois, as festividades profanas não tinham uma existência própria, decorrendo sempre das sagradas. Hoje, vive-se mais no século do que no sagrado, por isso, o secular ganhou um estatuto próprio, não precisando da boleia do religioso. Ele é, hoje, o verdadeiro culto. Entre Santa Luzia e São Brás, o tempo de espera para as raparigas serem agraciadas com as “ganchas”, em agradecimento aos “pitos” que elas lhe tinham dado nas festas de Santa Luzia, ou noutras.

O local de celebração e festa de São Brás é a «Villa Velha» e as “Marianas” as mais crentes e dinamizadoras. Não diz o Livro que «os desígnios do Senhor são insondáveis»? E lá está uma sentada, perto do portão do sul do Liceu, com a mesinha à frente, coberta por um pano branco, tendo em cima as ganchas, para venda, enquanto os altifalantes enchem os espaços de uma música para ninguém, alternando com o refrão musical monótono, subindo e descendo na escala, dos sinos da Igreja de São Dinis, que, assim, se vingam do silêncio de um ano. Com a devoção defunta, a tradição é, agora, a devoção, mas mesmo esta já não é o que era, pois não se ouve ninguém a cantar:

Vou ao São Brás
De cu ó pra trás
Buscar uma gancha
Para o meu rapaz.

Vou ao São Brás
De barriga prá frente
Buscar uma gancha
Para a minha gente.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2007

A un hombre de gran nariz

Érase un hombre a una nariz pegado,
érase una nariz superlativa,
érase una alquitara medio viva,
érase un peje espada mal barbado;

era un reloj de sol mal encarado, 5
érase un elefante boca arriba,
érase una nariz sayón y escriba,
un Ovidio Nasón mal narigado.

Érase el espolón de una galera,
érase una pirámide de Egipto, 10
las doce tribus de narices era;

érase un naricísimo infinito,
frisón archinariz, caratulera,
sabañón garrafal, morado y frito.


A um homem de grande nariz

Era um homem a um nariz pegado,
Era um nariz superlativo,
Era um alambique meio vivo,
Era um peixe espada mal barbeado;

Era um relógio de sol mal encarado,
Era boca acima um elefante,
Era um nariz brigão e escrevente,
Um Ovídio Nasón mal narigado.

Era o esporão de uma galera,
Era uma pirâmide do Egipto,
As doze tribos de narizes era;

Era um naricíssimo infinito,
Enorme arquinariz, carranca fera,
Inchaço garrafal, purpúreo e frito.

(Tradução de José Carlos Costa Pinto)

domingo, 4 de fevereiro de 2007

DO ABORTO

1- História. (i) A luta pela interrupção voluntária da gravidez tem já 25 anos e passa, no essencial, pelos seguintes momentos: (i) em 1982, o PCP leva o assunto à A.R., mas é rejeitado; (ii) em 14 de Fevereiro de 1984, é aprovada a Lei n.º 6/84 de 11 de Maio, era Presidente da República Ramalho Eanes e primeiro ministro Mário Soares, que diz o seguinte: «Não é punível o aborto efectuado por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida quando, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina: a) Constitua o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida; b) Se mostre indicado para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida, e seja realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez; c) Haja seguros motivos para prever que o nascituro venha a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação, e seja realizado nas primeiras 16 semanas de gravidez; d) Haja sérios indícios de que a gravidez resultou de violação da mulher, e seja realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez»; (iii) em 1988, o PS apresenta um documento que visava a despenalização do aborto, por vontade da mulher, até às dez semanas, documento que é, cobardemente, retirado para o substituir pelo referendo; (iv) em consequência dessa decisão, a 28 de Junho de 1988, realizou-se o referendo sobre a despenalização ou não do aborto, tendo ganho o “não”, com 50,91% dos votos, mas com uma abstenção da ordem 68.1%; (v) porque o aborto continua na clandestinidade e a ser feito sem condições, a não ser para quem tenha dinheiro para ir a Espanha, eis-nos com novo referendo à porta, a realizar no próximo dia 11 de Fevereiro, para respondermos à seguinte pergunta: «Concorda com a Despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez, se realizada por livre opção da mulher, nas primeiras dez semanas em estabelecimento de saúde legalmente autorizado»?

2- Sim ou não ou abstenção? A maioria das perguntas não se responde com sim ou não. Esta confirma a regra. Se o sim, quer queiramos quer não, abre as portas à banalização do aborto, o não, por seu lado, deixa em aberto o problema do aborto clandestino e em nada contribui para resolver situações de gravidez “indesejada” que não cabem na lei. O sim é de direita até às dez semanas e de esquerda para o resto da vida; o não é de esquerda até às dez semanas de vida e de direita para o resto da vida; o sim corta as pernas à vida, quando ela quer emergir; o não corta as pernas à vida, quando ela tem pernas para andar; o sim quer o aborto responsável; o não quer o aborto responsabilizado; o não é, muitas vezes, hipocrisia; o sim é, muitas vezes, resolver um problema incómodo; o sim é “liberal” até às dez semanas e anti-liberal para o resto da vida; o não opõe-se à liberalização até às dez semanas e defende o neo-liberalismo no resto da vida; o não quer uma moral do tamanho de Deus; o sim a lei e mais nada; o sim é “poético”; o não patético. O aborto é uma questão para ricos e remediados, que passa ao lado da felicidade inconsciente dos pobres, que, maioritariamente, dizem não ou não lá vão, porque o aborto não lhes diz respeito. Que seria da demografia, sem a «fauna maravilhosa do fundo do mar da vida»? Quantos consumistas não pensarão duas vezes: aguento a gravidez ou compro um carro às prestações? Numa sociedade do “bem estar e do comodismo”, os filhos dão muito trabalho e serão, cada vez mais, um incómodo. O homem subverteu a reprodução: o sexo é, por regra, prazer, e reprodução, por excepção. E quem veja o presente e pense no futuro fica, no mínimo, estéril.

3- O aborto da política. O referendo ou de preferência uma lei feita pela Assembleia da República (por que razão não pedir a quem penalizou que despenalize?), não podem aparecer como factos isolados e sem a companhia de uma legislação adjacente sobre: educação sexual nas escolas (e por que não pública, utilizando os canais estatais?); planeamento familiar; política de natalidade, com a dignificação e valorização desta, e apoio às famílias numerosas; criação de um posto médico, onde a mulher, que pensasse em abortar, fosse atendida por uma equipa interdisciplinar (médicos e psicólogos), ajudando-a a tomar a “melhor” opção. E, claro, com um debate elevado, acima de metafísicas terrenas e extra-terrenas e sem as metáforas de “telemóveis”, “ovos” e “pintos”. A ausência de legislação e acção que fizessem do aborto a última opção, a cobardia e temeridade políticas do PS, de que é prova a utilização do referendo somente para aquilo que não convém, não só reforçam o não como, principalmente, levam à abstenção. A política do aborto diz bem do aborto da nossa política. E se há partido político responsável pela actual situação, ele é, pela cobardia política e pelo condimento que sempre deu à questão – o ser salsa –, o PS.