quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

SANTA LUZIA, SÃO BRÁS E SÃO LÁZARO

Na santidade, também, há hierarquia. Não há sete céus? E se cada um fosse passar a eternidade no andar correspondente ao seu grau de santidade, quantos daqueles que, no aquém, vivem nos andares de luxo e em ricas vivendas não iriam habitar o rés-do-chão celestial? Além dos dias santos de guarda, reservados para Deus e santos principais, todo o dia tem o seu santo, mas não de guarda, porque, se assim não fosse, a religião teria sido, há muito, a primeira a superar o trabalho. Ficou-se pela superação do trabalho e dos trabalhos, no além. Dantes, quando não havia medicina, pobres e ricos recorriam aos santos para os livrarem dos males e maleitas que tanto os afligiam. Quer queiramos quer não, a medicina tem sido a maior causa de esquecimento a que os diversos santos foram votados, apesar de terem sido, durante milénios, os intermediários entre Deus e nós. Até a religião não escapa ao poder científico-tecnológico. Hoje, só em casos extremos, os homens se voltam para Deus. Antigamente, os pobres, mais achacados a maleitas de todo o género e, ainda, sem medicina, socorriam-se da divina, através do santo respectivo. Por altura da Peste Negra, São Roque, a peste da peste – Ero pestis tua, o pestis, como escreve Vieira – devia ter batido Deus e Maria, em protagonismo, tal a invocação de que foi alvo, por parte dos pestilentos, que os havia às centenas de milhar por essa Europa fora. Quem reconhece hoje, São Roque, com o cão a lamber-lhe a ferida, provando que a saliva tem poderes curativos? E como não há ninguém que lamba as feridas, mesmo o próprio ao próprio, quem havia de o fazer senão o cão, esse amigo mais amigo do que o próprio homem? E, face ao mal das goelas, lá estava São Brás, perante Deus, como advogado dos sofredores da garganta, que longe se estava de pensar que um dia haveria otorrinolaringologistas.

Das doenças da vista, tratava Santa Luzia e das bexigas São Lázaro. A “gancha” é a receita que São Brás dá para nos livrarmos do mal das goelas, o doce de calondro dos famosos “pitos” a medicação de Santa Luzia, para a vista, e os “cavacórios” de São Lázaro, para combater as bexigas. Como esta farmácia era bem melhor do que a actual! Muito desta farmacopeia continua viva, graças à Casa Lapão. Os doces típicos de Vila Real estão, assim, ligados a santos de devoção popular: a Santa Luzia, que se venera em 13 de Janeiro, os “pitos”, a São Brás, com seu dia a 3 de Fevereiro, a “gancha”, a São Lázaro, com festa móvel, porque sempre em função da Páscoa – Lázaro, Ramos e na Páscoa estamos –, o “cavacório”. Os “pitos” e as “ganchas” dizem bem do erotismo de que eram rodeadas as festividades em honra de Santa Luzia e de São Brás e da linha ténue que separa o sagrado do profano. Durante a Idade Média, e mesmo depois, as festividades profanas não tinham uma existência própria, decorrendo sempre das sagradas. Hoje, vive-se mais no século do que no sagrado, por isso, o secular ganhou um estatuto próprio, não precisando da boleia do religioso. Ele é, hoje, o verdadeiro culto. Entre Santa Luzia e São Brás, o tempo de espera para as raparigas serem agraciadas com as “ganchas”, em agradecimento aos “pitos” que elas lhe tinham dado nas festas de Santa Luzia, ou noutras.

O local de celebração e festa de São Brás é a «Villa Velha» e as “Marianas” as mais crentes e dinamizadoras. Não diz o Livro que «os desígnios do Senhor são insondáveis»? E lá está uma sentada, perto do portão do sul do Liceu, com a mesinha à frente, coberta por um pano branco, tendo em cima as ganchas, para venda, enquanto os altifalantes enchem os espaços de uma música para ninguém, alternando com o refrão musical monótono, subindo e descendo na escala, dos sinos da Igreja de São Dinis, que, assim, se vingam do silêncio de um ano. Com a devoção defunta, a tradição é, agora, a devoção, mas mesmo esta já não é o que era, pois não se ouve ninguém a cantar:

Vou ao São Brás
De cu ó pra trás
Buscar uma gancha
Para o meu rapaz.

Vou ao São Brás
De barriga prá frente
Buscar uma gancha
Para a minha gente.