domingo, 4 de fevereiro de 2007

DO ABORTO

1- História. (i) A luta pela interrupção voluntária da gravidez tem já 25 anos e passa, no essencial, pelos seguintes momentos: (i) em 1982, o PCP leva o assunto à A.R., mas é rejeitado; (ii) em 14 de Fevereiro de 1984, é aprovada a Lei n.º 6/84 de 11 de Maio, era Presidente da República Ramalho Eanes e primeiro ministro Mário Soares, que diz o seguinte: «Não é punível o aborto efectuado por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida quando, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina: a) Constitua o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida; b) Se mostre indicado para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida, e seja realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez; c) Haja seguros motivos para prever que o nascituro venha a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação, e seja realizado nas primeiras 16 semanas de gravidez; d) Haja sérios indícios de que a gravidez resultou de violação da mulher, e seja realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez»; (iii) em 1988, o PS apresenta um documento que visava a despenalização do aborto, por vontade da mulher, até às dez semanas, documento que é, cobardemente, retirado para o substituir pelo referendo; (iv) em consequência dessa decisão, a 28 de Junho de 1988, realizou-se o referendo sobre a despenalização ou não do aborto, tendo ganho o “não”, com 50,91% dos votos, mas com uma abstenção da ordem 68.1%; (v) porque o aborto continua na clandestinidade e a ser feito sem condições, a não ser para quem tenha dinheiro para ir a Espanha, eis-nos com novo referendo à porta, a realizar no próximo dia 11 de Fevereiro, para respondermos à seguinte pergunta: «Concorda com a Despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez, se realizada por livre opção da mulher, nas primeiras dez semanas em estabelecimento de saúde legalmente autorizado»?

2- Sim ou não ou abstenção? A maioria das perguntas não se responde com sim ou não. Esta confirma a regra. Se o sim, quer queiramos quer não, abre as portas à banalização do aborto, o não, por seu lado, deixa em aberto o problema do aborto clandestino e em nada contribui para resolver situações de gravidez “indesejada” que não cabem na lei. O sim é de direita até às dez semanas e de esquerda para o resto da vida; o não é de esquerda até às dez semanas de vida e de direita para o resto da vida; o sim corta as pernas à vida, quando ela quer emergir; o não corta as pernas à vida, quando ela tem pernas para andar; o sim quer o aborto responsável; o não quer o aborto responsabilizado; o não é, muitas vezes, hipocrisia; o sim é, muitas vezes, resolver um problema incómodo; o sim é “liberal” até às dez semanas e anti-liberal para o resto da vida; o não opõe-se à liberalização até às dez semanas e defende o neo-liberalismo no resto da vida; o não quer uma moral do tamanho de Deus; o sim a lei e mais nada; o sim é “poético”; o não patético. O aborto é uma questão para ricos e remediados, que passa ao lado da felicidade inconsciente dos pobres, que, maioritariamente, dizem não ou não lá vão, porque o aborto não lhes diz respeito. Que seria da demografia, sem a «fauna maravilhosa do fundo do mar da vida»? Quantos consumistas não pensarão duas vezes: aguento a gravidez ou compro um carro às prestações? Numa sociedade do “bem estar e do comodismo”, os filhos dão muito trabalho e serão, cada vez mais, um incómodo. O homem subverteu a reprodução: o sexo é, por regra, prazer, e reprodução, por excepção. E quem veja o presente e pense no futuro fica, no mínimo, estéril.

3- O aborto da política. O referendo ou de preferência uma lei feita pela Assembleia da República (por que razão não pedir a quem penalizou que despenalize?), não podem aparecer como factos isolados e sem a companhia de uma legislação adjacente sobre: educação sexual nas escolas (e por que não pública, utilizando os canais estatais?); planeamento familiar; política de natalidade, com a dignificação e valorização desta, e apoio às famílias numerosas; criação de um posto médico, onde a mulher, que pensasse em abortar, fosse atendida por uma equipa interdisciplinar (médicos e psicólogos), ajudando-a a tomar a “melhor” opção. E, claro, com um debate elevado, acima de metafísicas terrenas e extra-terrenas e sem as metáforas de “telemóveis”, “ovos” e “pintos”. A ausência de legislação e acção que fizessem do aborto a última opção, a cobardia e temeridade políticas do PS, de que é prova a utilização do referendo somente para aquilo que não convém, não só reforçam o não como, principalmente, levam à abstenção. A política do aborto diz bem do aborto da nossa política. E se há partido político responsável pela actual situação, ele é, pela cobardia política e pelo condimento que sempre deu à questão – o ser salsa –, o PS.