sexta-feira, 15 de dezembro de 2006

UMA FÁBULA ENTRE DUAS HISTÓRIAS

O cego e o rapaz

De aldeia em aldeia, mendigando, conduzia o rapaz o cego. Um dia, contrariamente ao pão seco do costume, a esmola foi acompanhada de chouriça. O rapaz nem queria acreditar e, antes que o cheiro chegasse às narinas do cego, guardou-a, rapidamente, dando-lhe metade do pão. Mas, ao levá-lo à boca, o olfacto do cego apercebeu-se, imediatamente, do cheiro a chouriça, que esta tinha deixado agarrado ao carolo de pão, não fosse a perda de um ou mais sentidos compensada com o reforço da acuidade dos restantes. Desconfiado, voltou-se para o rapaz: ouve lá, que é da chouriça? Que chouriça, retorquiu ele? Não há chouriça nenhuma. Deram-nos o pão barrado com cheiro de chouriça, mas chouriça nem vê-la, defendeu-se o rapaz. O cego, apesar de nada mais dizer, ficou na dele. Uns passos adiante, por descuido do rapaz, que saboreava, um pouco afastado, a chouriça, o cego bateu com a cabeça num sobreiro. Zangado, berrou-lhe: em vez de me guiares, em que andas a pensar, rapaz? Este, ainda com a história da chouriça na cabeça e com ela já no estômago, reagiu: cheirou-te, há pouco, o pão a chouriça, mas não te cheirou, agora, o sobreiro a cortiça. Infelizmente, quem precisa, mesmo com razão, não está em posição e condição de exigir.


O lacrau e a rã

Andava um lacrau, margem acima, margem abaixo, esperando encontrar um meio que o transportasse para o outro lado do rio. Mas quando o desespero começava a ser do tamanho da sua ruindade, eis que o destino lhe colocou uma rã na margem. E dirigindo-se para a rã: os deuses trouxeram-te, junto de mim, para me transportares para a outra margem. Os deuses, perguntou ela? O destino trágico, sim. Como posso confiar em ti? Estranha pergunta, ripostou o lacrau: se, ao me levares no teu dorso, te fizesse mal, o teu mal não seria, também, o meu mal? Perante argumento tão sólido, a rã anuiu em transportá-lo. A meio do rio, a tentação foi mais forte do que ele e da sua própria sobrevivência, e injectou o seu letal veneno na prestável rã. Quando a ruindade está na massa do sangue é ela que manda, mesmo quando a própria vida está em perigo. No rio da vida, somos, muitas vezes, vítimas daqueles que ajudamos: quem sobe na vida, o passado é para branquear e esquecer. E, quantas vezes, lacraus de nós mesmos, não nos auto-injectamos de venenos mortais, não resistindo a impulsos reptilários, que, em nós, ainda, permanecem e mandam?!


Se não sabes, não bulas!

Deu entrada, na urgência, um sinistrado, com a cabeça à mostra. Levado imediatamente para a mesa de operações, o médico cirurgião, enquanto esperava pela anestesia, para iniciar a intervenção cirúrgica, olhou para a cabeça empastada de sangue e, sem pensar, comentou para os seus botões: não sei por onde começar. O paciente, julgado inconsciente pela equipa médica, recomendou, lá dos interstícios do seu inconsciente profundo, ao cirurgião: se não sabes, não bulas! Quanta gente bule onde não devia e onde não sabe!