quinta-feira, 7 de dezembro de 2006

A PROPÓSITO DE PARECENÇAS



O nascer é, para quem nos espera, como se viéssemos do nada e não tivéssemos quase um ano de vida. Ninguém nos pergunta pela nossa estadia e habitação uterinas. As novas tecnologias não tardarão a possibilitar que os pais possam acompanhar visualmente a fase embrionária. A primeira preocupação, de quem nos recebe no átrio da vida, é saber se somos perfeitinhos e a quem nos saímos: tem aparecenças com a mãe; é a cara chapada do pai. É no início e no fim da vida que as parecenças são maiores: às parecenças físicas da nascença sucedem e juntam-se, com a entrada na segunda fase da vida, as parecenças comportamentais. Quem já não se confundiu, assustado ou assustada, com o seu próprio pai ou mãe? Sucede-me, por vezes, olhar-me ao espelho e estar lá outro: o meu pai. E tenho uma sensação estranha.

Mas as parecenças não acabam aqui. Ao longo da vida, não há ninguém que não tenha sido confundido com o seu outro, que não conhece e, mesmo que conhecesse, nele não se reconheceria. Todos têm o seu sósia: não o seu irmão biológico, mas estatístico. As combinações genéticas, ao tenderem para infinito, geram, necessariamente, sósias. Esta questão não deixa de estar presente na teoria do eterno retorno, que Raul Proença tratou nos seus dois volumes do Eterno Retorno. É no Capítulo VI do primeiro volume que a hipótese e natureza desse retorno são, especificamente, tratadas, sob duas modalidades possíveis: o retorno da identidade numérica e o retorno da identidade específica. A primeira — retorno da identidade numérica —, além do retorno cosmológico, conteria o retorno da singularidade do eu, a ressurreição individual numericamente idêntica e o valor escatológico; a segunda — retorno da identidade específica —, traduzir-se-ia por um retorno infinito de outro(s) Sócrates, mas como sósia(s) cosmológico(s) do mesmo. Esta pode ter valor cosmológico, mas, continua Raul Proença, «perderia inteiramente toda a sua significação escatológica: não teríamos diante de nós uma doutrina da ressurreição». [Raul Proença, ibidem]. E porque o eterno retorno nietzschiano “fica” pelo retorno da identidade específica (cosmológica), merece, a Raul Proença, o seguinte veredicto: «Zaratustra trouxe aos homens uma promessa desencorajante. [...]. Prometeu-nos repetirmo-nos.[...]. Prometeu-nos a eternidade, mas deu-nos, quanto a nós, uma eternidade ilusória... [...]. Zaratustra mentiu-nos! Abandonemos, pois, Zaratustra»! [Raul Proença, Ibidem].

Voltando às parecenças: ó homem, você é parecidíssimo com Saramago! Quando o vi, pensei mesmo que era ele. Perdão, atalhou ele. O Saramago é que é parecido comigo. Consigo? Interrogou o outro, incrédulo. Pois claro, comigo. Com quem havia de ser? Não sou mais velho do que ele? Não acha que é o filho que se parece com o pai e não o pai com o filho? O incógnito homem, que ninguém conhece nem conhecerá, não se quis ver confundido com Saramago, apesar de célebre e mundialmente conhecido. Saramago, porque mais novo, é que se deve parecer com ele. Num tempo em que poucos gostam de si e em que muitos imitam esta ou aquela figura pública ou dela são fãs, quantos não ficariam satisfeitos, se alguém lhes descobrisse parecenças físicas, ou outras, com alguma celebridade? É caso para dizer: quem não o pode ser, quer parecê-lo. Mas o nosso homem não: antes quer ser ele, simplesmente, do que parecer outro, celebremente. E como está certo!