domingo, 3 de dezembro de 2006

DA INVEJA

Nada possuamos, para que não nos invejem nem a morte nos desejem. Tudo e em tudo sejamos, para que a morte não possa connosco e Osíris não nos peça contas, quando a alma nos pesar. Há que matar a morte com o peso de ser. O ter, por mais pesado que seja, a morte o leva, folgada. Banquetear-se-á a morte com o nosso corpo, banquetear-se-ão os homens com os nossos bens, mas a alma do ser, se a tivermos, nem a morte nem os possessivos tocarão. A alma é o que se é e só tem alma aquele que é. Os encorpados e possessivos são desalmados. Fenecerão de corpo, os bens passarão e os deuses condená-los-ão ao esquecimento. O Egipto demonstrou que o corpo não tem salvação. A Grécia que a divindade e a eternidade estão na estética. As gerações que os bens não têm donos. O santo é, o poeta é, por isso, eternos: eternamente na alma daqueles que não são ou não podem ser tanto como queriam e desejariam. O bilhete para a eternidade não se pode comprar em qualquer editora ou loja metafísica. Os simples são uma espécie de santidade natural, distantes das doenças do «mundo humano». Há uma santa simples, que, acima de todos os deuses, adoro: minha mãe.

Existem duas espécies de inveja: a do ter e a do ser. A primeira faz parte da essência do mundo das coisas. A maioria dos invejados não só gosta de o ser como não olha a meios para passar de invejoso a invejado. No mundo do ter, o objectivo principal e final de vida é possuir e nunca ficar atrás do vizinho. Todos concorrem para ter mais do que outro e para fazer ver ao outro, saboreando o invejado, como aquilo que possui, a visão da mó da inveja a moer o invejoso. Tão ou mais importante que o ter é que o outro não tenha mais que nós. A inveja, neste aspecto, passou a ser o motor do consumo, levando a ter o que se não precisa e a gastar o que se não tem. No mundo do ter, possui a inveja invejados e invejosos: inveja o primeiro que o outro possa ter mais do que ele, inveja o segundo o que o outro tem. Invejar é in-ver: «olhar demasiado para aquilo que é dos outros». A inveja é profunda entre vizinhos ¬– vemo-nos, no ter, amiúde – e atenuada entre estranhos. Alimenta o invejoso o seu não-ter, «olhando demasiado» o que é dos outros, mas como o in-ver não se converte em posse, o resultado é o sentimento de desgosto por não ter bens iguais ou superiores aos alheios. O curioso tem os olhos nos dedos, o invejoso nas coisas alheias.

Outra a inveja do ser. Inveja esta não o que se tem, mas o que se é. São as duas invejas imunes, entre si, mas ambas trituradoras, na sua esfera. Diremos mesmo que a segunda é mais dolorosa, porque do domínio ontológico. Invejam os génios os deuses, os talentos os génios, os medíocres os talentos. A inveja do ser é in-ver demasiado o que o outro é. É inveja da eternidade daqueles que a conquistam e desgosto de sabermos que morremos, como castigo por trocarmos o ser pelo ter ou por incapacidade nossa de aceder ao eterno.