sábado, 6 de janeiro de 2007

DO INFERNO

«O inferno é onde quase todos vivem sem que o saibam
e donde bem poucos saem para sabê-lo... »
[Eudoro de Sousa, Mitologia História e Mito]

Esta frase lembra-nos uma outra, presente no Livro do Desassossego: «A decadência é a perda total da inconsciência; porque a inconsciência é o fundamento da vida. O coração, se pudesse, pararia». E mais estes versos de Ricardo Reis: só os que vão no rio das coisas são Felizes, porque neles pensa e sente / A vida, que não eles. A inconsciência é o analgésico que permite sobreviver no seio das labaredas das penas vitais. Ela está perto da naturalidade do instinto, contudo, este é, naturalmente, saúde, e a inconsciência, humanamente, analgésico. Só, saindo, entramos: só sabemos o inferno, que o vício é, depois de sairmos dele. Só quem saiu da vida, sabe da vida. Só quem saiu do inferno sabe do inferno e, também, sabe que a porta de acesso mais fácil aos infernos é a dos céus. Afinal, quem está desterrado e condenado: o que o está realmente, mas não o sabendo, ou o que o está no sabê-lo? Não há drama, não há tragédia, não há inferno, fora da consciência.

O inferno é o «mundo humano», melhor: a consciência dele. Este, sim, o verdadeiro inferno, que se potencia se se está contra ele. Que crime cometemos para os deuses nos condenarem à vida? Quem duvida que a vida é uma condenação? A religião não tenta salvá-la? A política não diz que a quer corrigir? A arte não faz do sonho a sua metafísica redentora? O instinto está acima da condenação. Na Natureza, não só o sofrimento está reduzido ao mínimo como não há consciência dele. A Civilização tem sido um inferno não só para o homem como para a Natureza e a vida, em geral. Se alguma espécie, superior à nossa, nos suceder, ver-nos-á como de facto somos: uma praga. E como as outras espécies invocarão os seus deuses para se verem livres de nós! Porque a melhor maneira de entrar é sair, todo o que sai, para entrar, condena-se à exclusão. Só sabemos o que é o amor, saindo dele, mas, se o sabemos, não o temos. Qual o melhor: tê-lo sem o saber, ou sabê-lo e não tê-lo? A consciência expulsa-nos das coisas, porque nos obriga a estar de fora para as ver. Assim, o consciente é temerário e o inconsciente aventureiro. A consciência não é boa companheira para a vida: a vida é para estar dentro dela e a melhor forma de a cumprir é não a questionar. Ela está fora de qualquer questão: «a inconsciência é o fundamento da vida». A consciência é, vitalmente, decadência e o consciente um doente.

O mito está certo: a queda foi a expulsão da inocência. Ser livre é livrarmo-nos de tudo o que nos prende, contudo, ao abdicarmos de possuir e de ser possuídos, abdicamos de viver. Só precisa de liberdade quem se sabe condenado. Os outros cumprem a vida. Por isso, só os que abdicam e «saem do inferno para sabê-lo», e tê-lo, têm necessidade e liberdade para criar céus. Todos precisam de um céu: o paraíso, para os crentes, a democracia, para os inconscientes, a Arte, para os conscientes.