quarta-feira, 19 de março de 2008
No regresso do Porto para Vila Real, parei em Amarante – terra em que não há ninguém que não saiba nadar e alcunha não tenha –, onde na companhia do meu concunhado coronel António Pereira da Silva, que, sempre amável e prestável, me leva e traz, almocei e passei parte da tarde. O almoço, no Quelha, foi, depois de umas entradas, polvo grelhado, brando que nem água, com batatas a murro, acompanhado de um excelente vinho verde tinto do “Marantinho”. Conta, se faz favor. Caro, mas excelente. Da próxima, diz-me ele, vai ser “verde”.
Para cortar, fomos à Confeitaria da Ponte comer uma léria e tomar café. Enquanto caminhávamos na companhia do rio – o Tâmega é uma divindade omnipresente – o meu concunhado, natural de Amarante, foi o meu cicerone. Olhando o anfiteatro, que assiste ao teatro das águas do lado norte, leu-me nele o teatro das gentes: ali, apontando o mercado, rouba-se, logo a seguir, indicando o tribunal, julga-se, e lá no cimo, vês a cadeia?, pena-se. Chegados à Pastelaria da Ponte, escolhemos uma mesa sobre o rio, ponteado de guigas, barcos de duas proas, não de vaidade, mas nada melhor a ré ser proa para um barco de regata cortar a meta em primeiro lugar. Falamos da tentação que Amarante é para os pintores e, como não podia deixar de ser, de Amadeo de Souza-Cardoso (exemplo de que a vida não vale só pelo número de anos) e de Teixeira de Pascoaes. O fio da conversa levou-nos a um familiar de Amadeo de Souza-Cardoso – o Cardosinho, de Manhufe, homem rico, que gastava os dias sentado, abstracto que nem bronze de estátua, no café Bar, e que um dia um pedinte perturbou: por amor de Deus, que tanto o prendou de bens materiais e outros, não podia dar-me uma moeda? A recusa, metafisicamente fundada e insensivelmente dada, não tardou: Deus deu-me, de facto, muito dinheiro, mas não me deu vontade nenhuma de o dar. Quanto à léria: pode ser patranha – alguém viu amêndoa amarga em doce? –, mas que é uma patranha gostosa, lá isso é.
Promessa gastronómica, tanto ou mais que a metafísica, é para cumprir. Um destes sábados fomos, na companhia das mulheres, ao “verde”. Para abrir o apetite, fizemos uma visita ao Parque Florestal, fixando-nos mais nas margens do Tâmega bordadas a amieiros. Demorámo-nos no açude, no retoiço e na fala das águas em cascata, e na pintura do casario e da ponte sobre a tela do espelho de água. A propósito dos moinhos, o meu concunhado, que não deixa de ornar, aqui e além, a conversa com humor, como vimos acima, chama-me à parte e diz-me: o cavalo da tia Maria moleira, com a primavera à porta, não parava de desenrolar a corda; dois adolescentes passaram e não se contiveram: tia Maria, já viu o cavalo? E sem ver: vi, vi! Quando vê homossexuais, fica logo naqueles preparos. A hora do almoço aproximava-se e lá fomos ao Quelha ao “verde”, espécie de açorda feita de miúdos de cabrito. Bom, mas pesado, como o preço. Com o ex-libris do doce conventual fechado (fechado, mesmo) – a Lai Lai –, o café não podia, apesar da repetição, deixar de ser na Confeitaria da Ponte A acompanhar o ritual do café, o meu concunhado ia tirando fotografias da mala do tempo e da memória. Do álbum, escolhi esta: aqui ao lado, conta numa voz de não acordar bebés, morava o senhor Miranda. As suas galinhas galgavam, amiúde, o muro e iam para o quintal da dona Maria Amélia, sua vizinha. Esta para as afugentar, atirava-lhe pedras. Um dia, o senhor Miranda, poeta repentista e bocageano, sempre de olho nela e nelas, arremessou-lhe a seguinte quadra sem esquadria: Dona Maria Amélia da m..., Beleza da p... que a p..., Se você mata o pito, Eu f... a si, ouviu? A digestão foi feita na margem direita. Primeiro, visitámos o museu Amadeo de Souza-Cardoso e, depois, passeámos sempre com a “Ilha dos Frades”, pintada e perfumada de amarelo mimosa, e com a casa da “Cerca” e a dos “Correios”, aonde se vêem ainda as ruínas do abrigo, onde a vergonha feminina de outros tempos se guardava de incontinentes, lascivos e concupiscentes olhares, como pano de fundo. Outros os tempos! Somos os tempos e esfumamo-nos no tempo.