sábado, 17 de junho de 2006

FUTEBOL: UM DESPORTO ACIMA DAS CLASSES

O futebol, mais do que um desporto de massas, é um desporto que atravessa toda a sociedade e, consequentemente, todas as classes. Se calhar, a coisa mais distribuída não é, como julgava Descartes, a razão, mas a emoção. O futebol é a ponte do falatório interclassista: um médico, um trolha, um professor, um polícia, todos discutem, todos argumentam, em pé de igualdade, os acontecimentos desportivos. Até me lembro de um presidente de um conselho directivo, não com o nosso voto, que o único jornal que lia era a Bola, entrando, na Escola, com ele debaixo do braço, com todo à-vontade e como se fosse a coisa mais natural e culta do mundo. Com um livro é que eu nunca o vi. Que seria das pessoas, sem o tempo e o futebol, para iniciarem e manterem uma conversa? Tem estado um frio dos diabos! Não acha? Está um calor insuportável! Nem à sombra se está bem. Passa-se o fim de semana em catarse futebolística e o resto da semana em euforia ou ressaca. O mundial de futebol está aí como meio de evasão para os problemas e para a crise. E para Sócrates o momento adequado para atacar a sério e a doer as vítimas do costume: professores e função pública. Antes da selecção partir para a gesta, ou para o naufrágio trágico-futebolístico, Cavaco não quis ficar atrás de Sócrates, tendo Belém recebido, tal como S. Bento tinha já feito, a caravela futebolística. A Federação, agradecida, ofereceu a ambos a camisola do 12.º jogador. Podia lá um político dizer que não gostava de futebol! Lá se ia a sua imagem populista, sem a qual as vitórias eleitorais estariam condenadas ao fracasso. E como condenar a idolatria ao jogador de futebol e aos ídolos da pop music que alguns manuais escolares não deixam de fazer, se Cavaco a alimenta?: «Faço votos para que o vosso brio, a vossa luta para vencer e o desportivismo sejam exemplo para as nossas crianças». E que dizer quando os “poetas” fazem poemas a Figo? A indústria futebolística, apesar de ter já levado o futebolista para a passerelle e a passerelle para o relvado, tudo está a fazer para levar as mulheres para os estádios, fazendo-lhes crer que sem futebol a sua libertação e a igualdade de direitos face ao homem não estarão completos. E lá foram elas, aos milhares, para o estádio nacional a alimentar o patriotismo da emoção. O futebol é a nova religião, com catedrais próprias, onde, em lugar de Deus, estão os ídolos, e, em vez da intimidade, do silêncio e da oração, está a descarga catártica: berros, palavrões, pancadaria ou a vitória que falta na vida. Os judeus e seus irmãos semitas islâmicos têm só um dia no ano para apedrejar o satanás e o bode. Está visto que é pouco. Importem o futebol, elegendo-o como desporto nacional, e terão um árbitro, para apedrejar ao sabat e às sextas, como nós já o fazemos aos domingos. Ele é o panem et circenses dos tempos de hoje. E para aqueles que não podem ir ao futebol o futebol vem a eles: as televisões trazem-no a casa, fazendo, por altura dos jogos dos “grandes”, um assédio tal que não há outro remédio, senão desligar o televisor, porque não há para onde fugir.
Os jornais diários desportivos, por sua vez, têm mais saída do que os de “informação” e não há canal televisivo que não tenha o seu painel de comentadores para a ressaca futebolística. E que seria do nosso patriotismo sem o futebol? Sem mar, sem caravelas, sem império, sem conquistas fora e dentro de nós, a selecção é, hoje, o esteio da lusa pátria. PS. Cuidado, professores e funcionários públicos! Sócrates já montou a estratégia: os pontos da lança da sua política – Teixeira dos Santos, Maria de Lurdes e Vieira da Silva – estão a postos para entrar a matar, à margem da lei e à canelada, escondidos pelo futebol.