sábado, 17 de junho de 2006

A Propósito do Filocafé: Bruno e Bruma

«Nenhum povo pode viver em harmonia
consigo mesmo sem uma imagem positiva de si».
[Eduardo Lourenço, in O Labirinto da Saudade]


Se partirmos do paradigma de utopia, proposto por Ernst Bloch – iluminação antecipante (Vor-Schein) sobre o ainda-não-ser, por parte da consciência antecipante do sujeito –, muita da literatura portuguesa bem caberia nesse paradigma utópico. Vítor Aguiar e Silva, no seguimento da sua definição de utopia – «A expressão multímoda e ubíqua da esperança – a esperança como sentimento e emoção, mas sobretudo como um acto cognitivo constitutivo do futuro» –, lê o episódio da "Ilha dos Amores" à luz da categoria da utopia: «A progénie forte e bela anunciada por Vénus será a encarnação da utopia como energia transformadora do ser» , o «...semen de um mundo, de um tempo e de um homem novos» . Contudo, se a utopia é «acto cognitivo constitutivo do futuro», caberá nela a esperança messiânica, onde o desbravar cognitivo e activo do homem («antropologia optimista» ) é substituído por uma concepção teológica ou teleológica da História? Pensamos que não.
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Mas, se olharmos à esperança, sem mais, de esperança e messianismo é, logo, o berço da nacionalidade e o mito de Ourique; de esperança é o messianismo do Mestre, em Fernão Lopes; de esperanças realizadas, são os títulos de D. Manuel I; de esperança no futuro de Portugal e de D. Sebastião, são os seguintes versos do Épico: maravilha fatal da nossa idade, / Dada ao mundo por Deus, que todo mande, / Para do mundo a Deus dar parte grande (Lus., I, 6) // E.../ Dareis matéria a nunca ouvido canto (Lus., I,15); de esperança, foi o salmo sebastianista durante o cativeiro; de esperanças são as Esperanças de Portugal, que Vieira profetiza; de desesperança continuava a ser o tempo para a gente de nação e para quem pensasse em ser moderno; de esperança iluminista, é a literatura romântica que almeja uma pátria à luz da Modernidade; apesar do suicídio, de esperança, é a ontologia anteriana; de esperança, é o nacionalismo místico de António Nobre; de esperança universal, é O Encoberto de Sampaio Bruno; de esperança, é a República; de esperança, é a “era lusíada” e o saudosismo de Pascoaes; de desesperança, é o modernismo; de esperança e luta, é o neo-realismo literário; de esperança, é o paracletismo agostiniano; de esperança as portas que Abril abriu... As nossas revoluções, com excepção da de 1383-85, que trouxe algo de qualitativamente novo (sem ela as caravelas não teriam saído do Tejo), nada mais foram do que tentativas para recuperar tempo perdido. 1820, 1910 e 1974 foram fugas para a frente.
(...)
A cumplicidade entre o religioso e o político, que acompanha toda a nossa História, com alguma excepção do nosso romantismo e da República, não podia deixar de se reflectir no mundo das ideias. Assim, desde o mito das origens de Portugal até Agostinho da Silva, há, apesar das diferenças, um pensamento que percorre uma certa história de Portugal: a missão sobrenatural de Portugal no Mundo e a consequente substituição do povo de Israel, como povo eleito, e de seu Deus (Javé) por Portugal e por um novo Deus (Cristo, Saudade, Paracleto). Contudo, a sistematização desta ideia – Portugal, como o outro eleito de Deus – só a encontramos presente, embora sob forma diferente, principalmente, em Vieira, Pascoaes e Agostinho da Silva. Teixeira de Pascoaes não só confirma o destino sobrenatural de Portugal como vê nele a pedra onde assentou e se edificou: «…este pensamento messiânico, redentor, sobrenatural, que já vem do longínquo alvorecer da Pátria e lhe deu independência e grandeza através dos séculos» .
O que faz (melhor, fazia) de nós sermos semelhantes a Israel é a fragilidade dos nossos Estados. No resto, somos absolutamente diferentes: eles unidos na Diáspora, nós diluídos na Dispersão, eles ricos, nós pobres, eles messiânicos nacionalistas, nós messiânicos universalistas. Eles Javé (Estado nacional e histórico), nós Cristo (além e império espiritual), eles Pedro (nacionalismo), nós Paulo (internacionalismo). Eles, sem território e sem Estado, nunca perderam, ao longo de mais de dois mil anos, a nacionalidade, nós, apesar de com Estado e território durante oito séculos, temos uma nacionalidade frágil.

As profecias são férteis em tempos de cativeiro, reflectindo elas a esperança e aspiração dos povos à sua libertação, porque como diz o salmo: Junto dos rios de Babilónia, ali nos assentámos e pusemos a chorar, lembrando-nos de Sião. (Salmo 136,1). Teve Israel mais profetas no tempo do cativeiro de Babilónia do que em toda a sua história. Do nosso cativeiro filipino emergiu o sebastianismo e, dizem, sobre ele já tinha profetizado Bandarra, em meados do século XVI: «Já o tempo desejado é chegado / Já se cerram os quarenta / Desta era, que se ementa / Por um Doutor já passado./ O rei novo é levantado, / Já dá brado, / Já assoma sua bandeira… / Saia, saia esse Infante / Bem andante! / O seu nome é Dom João. E se cativeiros nacionais fazem até os salgueiros chorar e mortos “desejar”, que dizer dos multinacionais? As profecias do Apocalipse de João – Caiu, caiu a grande Babilónia e converteu-se em habitações de demónios e em retiro de todo o espírito imundo e em guarida de toda a ave hedionda e abominável. / Porque todas as nações beberam do vinho da ira da sua prostituição; e os reis da terra se corromperam com ela e os mercadores se fizeram ricos com o excesso das suas delícias. // Ai, ai daquela grande cidade de Babilónia, aquela cidade forte; porque num momento veio a tua condenação. (Apocalipse, 18, 2, 3 e 10) – demoraram quatro séculos a realizarem-se, mas o desfecho traduziu-se, nunca o imaginaria o autor do Apocalipse, nas pazes entre Igreja e Estado: eleição do cristianismo como religião oficial de Roma, ou, segundo Agostinho da Silva, na venda da Igreja a Constantino.
Se assim profetizou João, ansioso que a Besta (Roma), cabeça do Império, caísse, que dizer do som da Trombeta apocalíptica, que anunciará o fim do Império dos impérios, pois os gritos nesse tempo não serão somente das doze tribos de Israel, mas de todas as tribos do globo. Contudo, onde estão os profetas, se só ouvimos as línguas através das quais o Império fala e escreve nas consciências? Se Leo rugiet, onde estão os profetas, que não os ouvimos?

Apesar do tempo, das distância e das Ideias, que separam Pascoaes (1877-1952) de António Vieira (1608-1697), três coisas há que lhes são comuns: ambos vivem num momento de crise da nacionalidade, ambos sistematizaram uma concepção mística da nacionalidade e ambos têm o seu apocalipse. Vieira, vivendo o cativeiro filipino e seu fim, insere a História de Portugal numa teologia da História, vendo nos profetas os “pontos” de Deus, que nos lembram o texto que cumprimos no teatro do mundo. Pascoaes vê, na República, as condições para a saída da decadência e para o renascimento de Portugal (A «Renascença Portuguesa» teria aqui um papel importante), no sentido de ocupar o seu lugar de liderança espiritual no mundo, pois a nação predilecta da Saudade. A importância da Saudade na mundividência pascoaesiana só é perfeitamente entendida quando damos conta de que ela religa, ontologicamente, a tríade: espírito, matéria (queda), espírito (redenção). Quanto à visão apocalíptica, Vieira vê no Quinto Império, a consumação dos tempos, e Pascoaes, em Regresso ao Paraíso, substitui, apocalipticamente, o velho Deus por um novo Deus, a fim de salvar, prometeica e clementemente, a Humanidade condenada, abrindo, assim, uma nova era divina e humana.
(...)
Teixeira de Pascoaes continua, por um lado, o evolucionismo espiritualista, raiz da heterodoxia religiosa de muitos dos intelectuais do século XIX (espiritualismo naturalista de Antero, misticismo naturalista de Junqueiro e teodiceia positivista de Sampaio Bruno) e, por outro, enxerta nele a saudade e a missão transcendente de Portugal. Com a gradual substituição da matriz romântica pela decadente, a revolução romântica deu lugar ao retorno de ideais sebastianistas e messiânicos, com excepção daqueles republicanos que inseriam a inevitabilidade da República na lei dos três estados de Comte. A partir da última década do século XIX, o Zeitgeist (Espírito do Tempo) começou a ser claramente outro: o racionalismo (Kant, Hegel) dá lugar ao irracionalismo e ao inconsciente (Schopenhauer, Nietzsche e Eduard von Hartmann); o mesmo acontece com o progresso de Michelet, Proudhon e Comte, que é substituído pela decadência de Lombroso e de Max Nordau; e o espaço do romantismo progressista de Vítor Hugo começa a ser ocupado pelo simbolismo e decadentismo de Mallarmé e de Verlaine. A categoria histórica da decadência e a sua tradução estético-literária vieram exacerbar, ainda mais, e alimentar o trauma da nossa decadência nacional. Depois de uma breve racionalização da História de Portugal, que percorre o nosso romantismo e, paralelamente, os nossos republicanos positivistas e racionalistas, eis-nos, novamente, no refúgio da salvação sebastianista e a ressuscitar a missão sobrenatural de Portugal, ou, como escreve Sampaio Bruno, dizer a Pátria é «revoar para as zonas transcendentes». A consciência do estado da nação gerou, por parte dos românticos, revolução e, por parte dos “decadentes”, nacionalismo místico e, por alguns modernistas, indiferença.
(...)
Sampaio Bruno, depois de uma fase materialista (Análise da Crença Cristã e A Geração Nova), espiritualiza Comte, Hegel e Marx, mas estes deixaram-lhe marcas: a sua teodiceia positiva evolucionista não deixa de ser o lugar de encontro ecléctico entre o hegelianismo, o positivismo, o marxismo, o darwnismo, a ciência, a religião e, claro, Leibniz (1646-1716). A ideia central do Encoberto (1904) é a de que o fim da História – «ajudar a evolução natureza» a superar o não homogéneo – não é obra de homem individual, mas odisseia universal e colectiva: «Dissipe-se a nuvem que encobre o herói. O herói não é um príncipe predestinado. Não é o mesmo um povo. É o Homem» . E termina O Encoberto, parafraseando a Paráfrase do maior crente do sebastianismo – D. João de Castro –, com a profecia de um Quinto Império, mistura de religião, marxismo e comtismo, que há-de trazer a paz universal: «Porque, em todo o mundo, a Paz será» . O progresso iluminista deu lugar a uma metafísica de progresso. Para Sampaio Bruno, a evolução é o meio para Deus sair da imperfeição em que caiu, sendo o «fim do homem» «ajudar a evolução da Natureza», ou seja, a ajudar a sair Deus da imperfeição, porque Deus, como absoluto, aproximando-se aqui de Hegel, está no final dos tempos. Esta a ideia de Deus presente em a Ideia de Deus (1902). Aqui, Sampaio Bruno, seguindo Leibniz, visa um compromisso entre o velho e o novo, só que, em Leibniz, essa contradição traduziu-se em vida e, em Sampaio Bruno, pouco ou nada de qualitativamente novo gerou. Ao fim e ao cabo, nenhum destes nossos intelectuais se conseguiu libertar daquilo que criticaram – o religioso – e isto porque nunca tinha havido na nossa cultura uma reacção secular, propriamente dita, com excepção de Anastácio Cunha.
A «Voz da Razão», de Anastácio da Cunha ou de quem quer que tenha sido, é o ponto mais alto do deísmo da nossa literatura nacional, superando, pela forma serena e racional, como vê a divindade, românticos e decadentes e outros.

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Se a razão, que do céu veio,
Enganaste o triste humano,
Não era a razão outrora,
Era deus autor do engano.

Se num ente limitado
Não cabe uma acção imensa,
Como pode a culpa humana
Tornar-se infinita ofensa?

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Se ofende as leis sociais
Evite-o a sociedade;
Não tenham ligeiras culpas
Castigos de eternidade.

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Grande Deus! Porque motivo
A criação empreendeste?
Que os homens te ofenderiam
Acaso não conheceste?
………………………

Se a providência previa
Dos homens o precipício,
Porque lhe deu (podendo)
Mais forças que ao torpe vício?
……………………

Foi-nos dado a liberdade,
Para podermos merecer;
Porém nós, dela abusando,
Quão funesta vem a ser!
……………………….

Pois um presente escolhido,
Que por um Deus nos foi dado
Para fazer-nos felizes,
Torna o homem desgraçado?…

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Que me aproveita o ser livre,
Se oculto motivo forte
Sempre (oh céus!) me determina
A obrar desta, ou de outra sorte?

N.B. Excertos retirados do ensaio (inédito) – Portugal: o outro eleito de Deus – de António Azevedo