sexta-feira, 23 de junho de 2006

SAUDEMOS A FLORAÇÃO DAS TÍLIAS

A Páscoa natural está entre nós e as tílias seu altar-mor. “Naturemo-nos”, desnaturados, e celebremo-la na floração das tílias. Celebremo-la numa oração à natureza divina da divina Natureza. Saudemos, na floração das tílias, a ressurreição do vegetal. Saudemos, nas tílias, a Natureza e nossa fidelidade à Terra. Saudemos, na Terra, o ventre vegetal. Saudemos, nas tílias, as árvores, irmãs nossas antiquíssimas. Saudemos, nas tílias, a Cidade. Saudemos, nas nossas tílias, todas as árvores de todas as cidades do Mundo. Saudemos, na árvore, a metáfora da Criação e de Tudo amplexo. Saudemos, nas árvores, a Contemporaneidade. Saudemos, no reino vegetal, a alimentação empedocliana de terra, água, ar e fogo. Saudemos, na vegetalidade, os ombros da animalidade. Saudemos, na folhagem, o ar que respiramos. Saudemos, na seiva, o sangue nosso primitivo. Saudemos, nas raízes, o nosso amor à terra e às origens. Saudemos, no tronco, a Verticalidade. Saudemos, nas copas, o céu que tocam, as aves que as habitam e o vento que as agitam, sacodem e exercitam. Saudemos, na floresta, o mundo vegetal e seus medos, mistérios e virgindade antigos. Saudemos, na floresta, Enkidu e os cedros do Líbano. Saudemos, nas florestas africanas, a nossa Casa antiga, de onde, um dia, saímos, mal passo e atrevimento nossos, abalando pela savana da existência. Saudemos a saúde do natural, deste lado doente e artificial. Saudemos, na floração das tílias, o nascimento de Eros, que antes de ser animal foi vegetal. Saudemos, na floração das tílias, as primeiras flores que enfeitaram a Terra. Saudemos, na floração das tílias, o tempo de núpcias vegetais. Saudemos, na floração das tílias, a nossa floração. Saudemos, himeróticos, as tílias vestidas de erotismo. Saudemos os insectos que vêm, casamenteiros, à orgia vegetal. Saudemos, na perda de virgindade de miríades de corolas, os lábios de pétalas. Saudemos, na floração das tílias, o bacanal vegetal acima do bem e do mal. Saudemos, na desfloração, a floração. Saudemos, na floração das tílias, o cio da terra, da seiva e da vida.

Choremos a partida dos deuses da Terra. Choremo-la. Choremos a morte da natureza divina da Natureza que a metafísica, a racionalidade e a ciência sentenciaram. Oh, Terra antiga, Jardim dos deuses e os homens seus jardineiros! Expulsamos a humanidade superior divina e substituímo-la por um Deus estranho à Terra. Devastamos o Jardim e substituímo-lo pela Civilização. Expulsamos os olhos cheios de Natureza e substituímo-los por uma razão repleta de fórmulas e equações abstractas. Que importa ter uma teoria do Universo, se o Universo não tem nem precisa de teoria alguma? Que importa a teoria da criação, se não amamos as criaturas? Há mais verdade na iliteracia absoluta do que na absolutização da literacia. Há mais Universo no sentir do que no conhecer. Conhecer sem sentir é mentira científica como sentir sem sentimento é farsa artística.

O nosso pecado original foi termos saído da Natureza. Queda irreversível. Saímos da naturalidade e entramos na artificialidade. Artificiais, artificiais, cada vez mais, artificiais, é o que nós somos. Não há baptismos nem políticas que nos limpem. Uns vão ao Jordão limpar-se, outros, pela mão de Rousseau e Marx, vão ao passado buscar o «bom selvagem» para curar o mau selvagem civilizacional. Não é pela vida nem pela História que voltamos a Casa, mas pela mão da morte, que ao pó natural nos restitui. Saudemos, nas floração das tílias, a saudade da naturalidade, que fomos.