domingo, 24 de setembro de 2006

A PERSIGNAÇÃO SOCRATISTA

Persignem-se, que a coisa, hoje, não é para menos. Ou por palavras mais chãs: façam o sinal da cruz. Quarta-feira. Dia 13 de Setembro. Via, por acaso, televisão e não queria acreditar no que via: Sócrates, mais a «senhora da educação», parafraseando Pulido Valente, que não é propriamente um valente polido, na inauguração, benzida (!), de uma escola em Faro, não se escusou, com ar beato, a benzer-se! Eu vi. Eu vi. Eu não queria ver. Eu não queria acreditar no que estava a ver. E perguntei-me: onde está o cumprimento do protocolo de Estado, onde se terá metido o «animal feroz», o político duro? Os homens vêem-se frente a Deus e não suportados em maiorias políticas, que, da mesma maneira que lhes saíram, um dia, na rifa, os irão, não tardará, rifar! Quinta-feira. Dia 14 de Setembro. Percorri os jornais e o que queria ver não vi! Nem uma palavra!

Perante o silêncio dos jornais ditos de “referência”, porquê eu, ó deuses, eu, o provinciano, eu, a quem Sócrates não lê, mas de quem, se calhar, fazem queixinhas (e a mim que me importa, se a ele ninguém vai ler, porque não escreve, nem ouvir depois de se lhe acabar o tempo; ia a dizer outra coisa, mas arrependi-me), eu, o que escreve num jornal da província, eu, um amador da cultura, que nunca chegará a profissional ou servidor cultural, ganhando ou acumulando ordenados chorudos (se calhar, esta a razão, porque o escolhido!), eu, a quem nenhum jornal de “referência”, publicaria esta crónica, porque politicamente incorrecta, e a fazê-lo, ratada apareceria, eu, a quem ninguém dá valor, e bem, porque o não tenho (estou melhor assim do que me ser dado, superlativo, por outros e ser levado a pensar que o tinha, não o tendo), porquê, oh, deuses!, porquê, eu, o escolhido a quebrar o silêncio e a escrever sobre a socrástica persignação (os inteligentes saberão por que não socrática) e obrigado a retirar a crónica que estava já preparadinha para a próxima semana, e a entrar com esta, apesar de, ainda, com a esperança que Pulido “ataque” durante o fim de semana? E os deuses: não, não, fá-lo tu, pois há para aí gente que pensaria, e diria, logo, que lhe segues os temas. Fá-lo, já, apesar de estas linhas somente irem ver as letras da imprensa e os olhos dos leitores a elas, na próxima semana. Mas porquê, ó deuses, me castigais duplamente, dando-me o daimon, mas retirando-me os louros da crítica? Por que fazeis de mim o Job da cultura? Eu, o heterodoxo, à margem das capelas locais e nacionais, eu, o verdadeiro periférico, eu, que não tenho «pontas» na Cidade em que vivo nem naquela que o vosso Ulisses criou, nem cadernos culturais a escreverem, e eu a acreditar e a ficar babado que é verdade, que a melhor crónica que se faz em Trás-os-Montes é a minha! Tonto, tonto, como é que a autoridade (autor)iza?, como estás doente e sem sensibilidade, responderam-me: substituis a leveza das musas por musos pesados e confundes o valor do galo com o poleiro em que canta.

Beba, então, a cicuta (ou néctar?) com que os deuses me condenaram: a persignação socratista. Melhor, a uma rubrica dela, pois a persignação ortodoxa exige uma cruz na testa, outra na boca, e outra, ainda, no peito, invocando ao mesmo tempo a Santíssima Trindade (leio no dicionário ao mesmo tempo que recordo a catequese), e não aquela trapalhada, de quem está atrapalhado, de fazer um rabisco de persignação. Saberá Sócrates que persignação é um sinal de quem Deus e a Trindade tem na mente, na boca e no coração? Ou tratará Sócrates Deus como as suas promessas eleitorais? Andou Vera Jardim a teorizar, o PS a propor e a Assembleia da República a votar as novas regras de Protocolo de Estado, de acordo com a Constituição de um Estado não confessional, e eis que o primeiro-ministro é o primeiro a não só não as respeitar como a entrar, no mínimo, em contradição consigo e com a Lei. O que é duplamente grave. Das duas uma: se é crente, devia respeitar o Estado não confessional, porque num acto oficial, melhor, de e em propaganda política, mais a sua capataz do ensino; se não crente, ainda mais grave: porque hipocrisia. Sócrates feriu tudo: a si (sabê-lo-á?), o Protocolo, o Estado e Deus. Vai Sócrates descalçar os sapatos, voltar-se para Meca e rezar a Alá, se, um dia, entrar numa mesquita? Vai Sócrates colocar o solidéu judaico e orar a Javé numa sinagoga, quando não é, que se saiba, do «povo eleito», embora eleito pelo povo, cruzes, cruzes?! E andamos nós a mandar militares para o Afeganistão, a fim de combater os talibãs, e a defender que os Estados árabes deviam separar o político do religioso, quando temos a confusão e seus resquícios dentro de casa! E, perante tudo isto, como me persignaria, se crente fosse! Cada um tem sua forma de se benzer. Esta, apesar de muitos me poderem vir a chamar, no mínimo, de infiel, a minha.

PS. Sábado, recebo, por correio, via Gomes, duas cartas do Dr. Nuno Botelho, com recortes da imprensa nacional que ao assunto se referiam. O Público, de sábado, escondeu, lateralmente, na página dezoito!, o protesto da Associação Cívica República e Laicidade, e o Diário de Notícias, de sexta-feira, traz um artigo de opinião de Fernanda Câncio – «A esquerda benzida» –, onde não conseguiu mostrar a independência e o profissionalismo que pretendia: o cumprimento da “tradição” em lugar da “modernidade”, por parte do primeiro-ministro (não nomeia Sócrates), face a um incógnito padre, não é nada, se comparado com a “gentileza” do «ateu Fidel» e da “grosseria” de Zapatero, perante o pontífice. E esquece (?) o mais importante: a socratista persignação! Compreende-se, o amor fala mais alto. Além disso, se todos mandam a «laicidade às urtigas», isto «não destoa».

Vila Real, 15 de Setembro de 2006

Nota: Até o Eixo do Mal passou sobre brasas sobre o assunto!