sábado, 16 de setembro de 2006

SENHOR, POBRES DOS NUS!

A maioria das vezes, as vestes não enfeitam o corpo. Escondem-no. Por regra, os currículos não mostram a mente. Enfeitam-na. Carnaval da vida. Daí que os figurantes do sambódromono da existência se adulem pela frente e se mordam por trás, se amem às claras e se entreguem escondidos, não se coibindo, mesmo assim, de criticar a geração dos pais e avós por fazer amor em ceroulas, quando eles fornicam às escuras! Aumentar a escuridão sem estrelas a povoá-la é fácil, mas dar à luz é tão difícil e doloroso como saboroso. Sãos, quanto raros, os nus, logo acusados, pelos expulsos, de ingénuos e inocentes. Senhor, pobres dos nus e como o inferno é o paraíso e a expulsão os céus! A vida devia ser, corporalmente, uma praia e, espiritualmente, anónima. Tirada a roupa, trememos de fealdade, esquecidos os títulos, nem uma linha, uma ideia, um pensamento, sacudida a importância, só nulidade. A maquilhagem é provisória e falsa: provisória a beleza que mora sob a toilette, falso o valor que se suporta em títulos entalados, para não falar das vertentes impressionistas da personalidade de alguns pavões, que saboreiam como presunto as palavras que atiram lá do cimo do seu ar despiciendo quanto altivo.

Um amigo perguntou-me: quando escreve, como assina? Pelo nome, respondi. Acho bem, mas assim não vai a lado nenhum. As coisas devem valer por si. Acrescentei. E continuou: mas quem está para ver com objectividade seja aquilo que for e quantos têm capacidade para o fazer? Não vê que no final do texto lá está a tala a suportá-lo: o professor universitário, o ex-ministro, o isto e aquilo? A este propósito, um médico, continuou, perguntou-me: há alguém que dê importância a um letreiro, onde se lê: médico disto ou daquilo? E respondeu-me com a mesma convicção com que me fez a pergunta: ninguém; mas se acrescentar: director que foi de uma especialidade qualquer de um hospital de estrangeiro, o caso muda imediatamente de figura. E sabiamente rematou com esta magia: parece, logo, outro, sendo o mesmo. A magia não desapareceu, os mágicos é que mudaram de nome. Comentei. E, após um breve silêncio, foi à filmoteca inesgotável da sua experiência de vida e tirou de lá mais esta cena: um reitor, meu conhecido, foi ao Ministério da Educação. Atendeu-o o senhor Antunes: quem devo anunciar? Entregue este cartão, se faz favor. O senhor Antunes, ao não ver nada de magnífico na pessoa que tinha ali à sua frente nem nenhum título no cartão, augurou-lhe: aconselho-o a ir embora, pois não vai ser recebido... Não faz mal, faça o favor de o entregar.

Mais importante que sê-lo é parecer sê-lo. De facto, a magia não desapareceu. A vida não é uma posição, mas uma suposição! Mais: uma pressuposição. Ou ainda melhor: uma pressuposição presunçosa! Que seria de tantos pés e mentes descalços sem calçadeira? Calçados pelo partido, calçados pelo lugar, calçados pelos críticos e pela crítica oficial e oficiosa, andam vaidosos quanto doridos, não cabendo nos sapatos da vida. Como a vida anda ao nível dos pés! Esta gente o que está é todos os dias morta por chegar a casa para se tirar dos sapatos em que está. Mas ao contrário dos sapatos, quem precisava de ir à forma era ela. O calçado de hoje, andará descalço amanhã, se não desaparecer até lá; o descalço de hoje, mesmo que amanhã continue descalço, não notará a diferença.