segunda-feira, 11 de setembro de 2006

NAZARÉ

Agosto continua quente. A tradicional nortada fresca que pede um agasalho, à noite, até agora, não apareceu. O mar, na sua luta de tomar a terra, que tem tanto de Titã como de Tântalo, a todos – ricos e pobres, feios e esbeltos, sujos e limpos, eficientes e deficientes –, indiferentemente, banha, contrariando a hierarquização das zonas da praia. Ocupam os elefantes marinhos a beira-mar, em função da sua corpulência, os humanos, em função da sua função. A praia é a verdade do corpo: natural e sem a mentira do vestuário. Sem esta mentira, que seria daqueles que escondem, no que vestem, o corpo que não têm como outros, no palavreado, a alma que perderam ou nunca tiveram? Falatório e vestes: a mesma roupagem para escondermos a nudez! Só o que vive em nudez vive em verdade. Se a maioria dos espaços sociais são heteronímicos – cada um procura e habita o espaço onde se mente ser –, o da praia, com excepção daqueles que a ela vão para vestir outra pele, é ortonímico, porque nos mostra nós mesmos. Se nos enamorássemos na praia, o rosto do amor e do mundo seria bem outro. Não necessariamente mais humano, estético e fiel. E face a tanta naturalidade corporal, a própria alma se naturaliza, regressando ao adâmico estado: para além do bem e do mal.

Aqueles que já não têm corpo para mostrar, mas para conservar (ou recordar), passeiam ao longo do extenso areal – das Pedras, onde o Sítio se precipita pela falésia, até ao Pontão, que alberga a marina dos humores do neptuniano mundo –, como quem revisita a memória que vai desde a criança, que mete o mar dentro do balde, até à descoberta que a realidade é irreal e a vida castelos de areia. Uma onda maior, anunciando a maré alta, espraia-se longamente pela praia, apagando pegadas e sonhos. Pegadas que são, para a criança, os primeiros passos e, para mim, passos passados; sonhos que, para ela, realidade são e, para mim, refúgio.

Enquanto assim sinto, o homem dos gelados passa, apregoando: «Olha o gelado! Gelados Olá!, rijinhos e fresquinhos»! Uma criança convence a mãe, pelo choro, a ter o seu gelado. E eu, que faço da escrita minha oração e choro, a quem quero convencer, se não há ninguém que me ouça e salve? Derretida, a criança saboreia a sua metafísica. Eu, pelo vício metafísico de pensar, derretido.