quinta-feira, 22 de março de 2007

O QUOTIDIANO


«Todo lo cotidiano es mucho y feo»
[Francisco de Quevedo, in «Hastío de un casado al tercero dia»]

O que nos cansa e, lentamente, mata não é o trabalho, mas o não trabalhar ou o trabalho que não nos realiza. A diferença entre o que não tem trabalho e o que o tem por ter é quase nenhuma: o primeiro cansa-se por não ser, o segundo cansa-se para não ser, tendo como única recompensa um salário salgado e curto. Feliz daquele que, pelo trabalho manual ou intelectual, se realiza pelo que faz, porque criativo. Só criando nos criamos. Só recriando nos recriamos. Só amando o que fazemos nos fazemos e amamos. Só amando-nos amamos. A vida é, por regra, rotina. E quando não nos pertence, desfazemo-nos naquilo que fazemos. O quotidiano é repetição, insensibilidade e cumprimento dos horários dos outros sem tempo para nós. O quotidiano é como manguitos roçados e gastos; hábito cheio de borboto; ambiente fechado com cheiro a mofo e bafio; fastio de viver.

A maioria está condenada ao quotidiano. Uma minoria a alimentar-se dele. Raros os feitos à imagem e semelhança do demiurgo. A expulsão fez do homem presa do homem. O pulso é expulso e o impulso expulsão maior. Quem quiser matar alguém dê-lhe trabalho a mais ou não lhe dê trabalho nenhum. O animal não vive no quotidiano, mas na naturalidade. O animal cumpre a natureza. Nós, na nossa liberdade, não nos cumprimos. Não bastava já o emprego que o próprio desemprego se tornou na forma mais cínica de escravatura do nosso tempo, melhor, de fazer de uma pessoa um condenado a vadiar no não ser. Se o empregado é, muitas das vezes, um expulso, mesmo estando dentro, o desempregado é o expulso sem nunca ter entrado. A vida é, cada vez mais, condenação e expulsão, mais sobrevivência e menos vivência. Dois os fardos: o insustentável fardo do não ser e o de proibido de ser. «O que a vida – escreve Agostinho da Silva, em Doutrina cristã – apresenta de pior não é a violenta catástrofe, mas a monotonia dos momentos semelhantes; numa ou se morre ou se vence, na outra verás que o maior número nem venceu nem morreu: flutua sem morte e sem esperança». Alguém perguntou a um pedinte de uma cidade norte-americana o que o fazia viver. Ele respondeu-lhe: o hábito.

Durante a nossa vida, quantos dias saímos do quotidiano? Nas contas da vida, quantos os dias nossos? Quantos os sonhos que saíram da noite? Quantos os dias em que imitámos o Criador? Quantos à sua imagem e semelhança? Quantos em que não mandámos nem obedecemos, mas nos fizemos? Se todo lo cotidiano es mucho y feo, que dizer de todos os quotidianos de uma vida inteira somados?! Na mater(ia), nada se repete: não há dois electrões iguais no universo! Contudo, a Humanidade “evolui” à custa da repetição. A Humanidade, além de ser uma tragédia e um desperdício, é contra naturam: a espécie homo sapiens não só inverteu a biologia – homem lobo do homem –, como condena a Terra e a Vida e fecha as portas à evolução desta. A nova catarse para a tragédia é a natureza terrena da nova religião. O domingo é cada vez menos o dia do ópio do além e mais do aquém. O consumismo apoderou-se dele: os Shopping Centers são o céu terreno, onde, ao fim de semana, se vai gastar o inferno que se ganhou ao longo da semana. Todo lo cotidiano es mucho y feo. Contudo, como o dia é breve quanto belo! Quantos o são? Olhai as aves do céu a saudarem-no e serem-no em cada dia que nasce, em seu voo e chilreio – enquanto nós, estremunhados, berramos contra o despertador – e as plantas a beberem luz, que alimenta o rés-do-chão da vida.