terça-feira, 15 de agosto de 2006

MAIORIAS

Nunca poderia ser político porque detesto estar com a maioria ou ela comigo. A maioria está sempre certa: segue o que vai à frente e nunca se segue a si. Na política, sempre fui perdedor, mesmo quando ganhei. Votei Sampaio, mas perdi. Perdão, perdemos. Há quem ganhe sempre, ou quase sempre, e se sinta, por isso, o mais feliz dos mortais. Estão neste caso os que são, politicamente, do PSD ou do PS e, desportivamente, do FCP. Num dia, põem a bandeira do FCP na varanda, no outro, a bandeira do PS ou do PSD. Melhor do que isto só uma casal centrão, estratégia, por alguns montada, para ganhar sempre: ele do PSD ela do PS, ou ao contrário, o que vai dar ao mesmo. Quem se importa de ganhar a si mesmo?

A maioria, seja simples ou absoluta (ditadura democrática), nunca a poderia ver como um «ganhámos-lhes!», mas como uma forma de “todos” ganharmos. As maiorias absolutas são sempre fruto de conjunturas difíceis e das fragilidades do adversário. Contudo, os políticos, em lugar de se compreenderem como seu efeito, olham-nas como causa sua. A maioria que, hoje, deu a maioria absoluta a Sócrates é a mesma maioria que, ontem, a tinha dado a Cavaco; a maioria, que lhes deu a maioria, é, apesar dos anos volvidos, a mesma maioria que não lê um livro na vida; a mesma maioria que colocaria o Sol a andar em torno da Terra, caso o assunto fosse a votos; a mesma maioria, mas para absolutíssima, que nada sabe de Ourique a Alcácer-Quibir, de D. Sebastião a Cavaco, das cantigas de amor e de escárnio e maldizer a Saramago, passando por Fernão Lopes; a mesma que decide da vida dos outros sem nunca se interrogar pela sua; a mesma que vota onde os caciques da terra, dos céus e do purgatório lhe mandam; a mesma que vê todos os dias telenovelas e não dá conta da telenovela da sua vida; a mesma que não perde big-brothers, celebridades e directos de bodas de pessoas importantes num voyeurismo compensador da cegueira de si; a mesma que decide a política sem saber o que é a política; a mesma que não sabe ler o livro de reclamações do existir e de fazer uma reclamação aos homens, aos políticos e aos deuses; a mesma que não faz a Vontade Geral, porque sem vontade particular e própria; a mesma que dá a maioria a um partido como forma de castigar o outro, mas que, no final, o castigado é ela; a mesma que dá arrogância, prepotência e soberba a quem minoritariamente a não tem; a mesma que transforma a força da política em política da força; a mesma que admira a política musculada, porque nunca saiu da menoridade cívica; a mesma que não faz um Nós, porque não sabe de si; a mesma que não sabe que aquele que dá maiorias mais em minoria fica. Não admira, assim, que a nossa democracia, em vez de um destinarmo-nos, seja um destino: não há alternativa a nós nem aos dois da vigairada.

A qualidade da política não se mede pela qualidade dos políticos, mas pela qualidade dos cidadãos, porque sem estes não há aqueles A qualidade de uma democracia não se mede por maiorias políticas, mas por uma maioridade racional e cívica. A qualidade de um governo não se mede pela quantidade daqueles que o elegem e suportam, mas pela qualidade dos cidadãos. A qualidade de uma política não se vê pela qualidade dos políticos, mas pela qualidade da opinião pública. Em democracia, primeiro está o cidadão, depois o político. Primeiro, a nação, depois o partido. Primeiro, a coisa pública, depois as coisas nossas. A legitimidade de uma política não radica em maiorias ou minorias, mas no conteúdo e qualidade democráticos.

terça-feira, 8 de agosto de 2006

A DESTRUIÇÃO DO PAÍS DOS CEDROS

Dói-me a destruição do Líbano – o País do Cedros –, por parte do sionismo, como me dói a ocupação da Terra de Entre-os–Rios (Mesopotâmia), hoje o Iraque, por parte dos yanques. Na Mesopotâmia, nasceu a Civilização e de Ur partiu Abraão em demanda da Terra Prometida. No País dos Cedros – de cedro do Líbano eram as madeiras do Templo –, nasceu o alfabeto e de Biblos, Sídon, Beritus e Tiro partiu para todos os portos do Mediterrâneo antigo e, depois, para todos os livros e escolas do Mundo. Sídon, Beritus (Beirute) e Tiro, cidades da Humanidade, vejo-as, hoje, bombardeadas por Fantons, por canhões, armas inteligentes e bombas de fragmentação, pelo povo eleito de Javé! Quem bombardeia a História como pode ser sensível à morte de inocentes, à destruição de um país e à deslocação de milhões de civis? E não deixo de ficar temeroso pela aliança judaico-americana e pela vigilância pidesca do Echelon de Cias e Mossads! E quando penso que, ontem, a Alemanha, apesar da sua cultura e de ser uma das pátrias do Iluminismo (Aufklärung), se atreveu a julgar-se o povo eleito pela biologia, mais receoso fico quando vejo a nova versão de povo eleito por Deus – e por ele mandatado para evangelizar o Mundo com a “sua” democracia – e a velha versão do povo eleito por Javé unidos e metidos no mesmo barco. E não me venham com a conversa, falsa, de que o culpado foi um tal Hitler e que agora é um tal Bush! Tal como uma andorinha não faz a primavera, um só homem não faz, para bem ou para mal, a História. Temo, civilizacional e historicamente, mais o nacionalismo, religiosamente, fundamentado de algum Ocidente do que o fundamentalismo religioso de algum Oriente! O Ocidente, rico, vive no fundamentalismo do não fundamento: na “utensialização” da razão, no vazio e nos céus da efemeridade. O Oriente islâmico vive no fundamentalismo religioso: cheios de céu, porque no inferno. Quem, na realidade, são os Estados fora-da-lei? Os EUA não invadiram o Iraque, à revelia do direito internacional e da ONU, e Israel não invadiu o Líbano como invade e ocupa a Palestina, e sem nunca ter cumprido qualquer resolução da ONU? O Terror são os outros. Eles os arautos da Civilização!

Israel pode ser o Estado mais bélico por metro quadrado do mundo, mas os outros só podem ter fisgas. Hoje, quem o Golias e quem o David? Os EUA podem armar, do melhor, Israel, mas o Irão ou outro país não pode armar com uns “foguetes” os palestinianos ou o Hezbollah (Partido de Deus). O que salva o Mundo da materialização imperialista, por parte dos EUA, é o facto de eles não terem o exclusivo das bombas nucleares. Assim, ficam pelo domínio relativo do globo, mas não pelo absoluto. Os EUA realizaram o «fim da História» e das ideologias, ou seja, fecharam-na. Hoje, não há política: a Ocidente, as ideologias estão mortas; no mundo islâmico, porque sem democracia nem pensamento político, fizeram da religião o seu marxismo e da guerra santa o seu proselitismo internacionalista revolucionário. O Mundo está sem pensamento e sem princípios, sem princípios!, seja na vida individual, na nacional ou na mundial. Este o cancro com metáteses globais que tudo está a minar e a comer. A comer-nos.

Onde está Barroso, que nem se vê? Coitado! Onde está Xavier Solana, que não se vê o que anda a fazer? Pobrecito! Onde está a Europa? A França anda por um lado, a Alemanha por outro, e Blair por Bush! Os outros países nada riscam! Eis aos olhos de todos a razão por que o Tratado da Constituição Europeia ficou no início do caminho! E se esta agressão israelita foi pensada, preparada e planeada, juntamente com os EUA, por que razão a Europa se sentou, em Roma, à mesma mesa para discutir o cessar fogo? Como diz o ditado: não é tão ladrão o que vai à horta como o que fica à porta? Os EUA só aceitarão qualquer cessar fogo quando os objectivos de Israel forem atingidos. Ou quando a «raiz do problema», como dizem, for eliminada. E como era importante, para o Mundo, uma Europa com uma voz política internacional com princípios, determinada e única. A melhor forma de acabar com a guerra é tornar património da Humanidade a Mesopotâmia, a Palestina, Israel, o Líbano, o Egipto, a Turquia e a Grécia.

quarta-feira, 2 de agosto de 2006

BACANTE

Quem diz que os deuses da Terra dela partiram para sempre? Quem diz que as Bacantes abandonaram, com Brómio, o que brama como os animais selvagens, as míticas terras da Frígia? Quem não vê pelo natal dos pampos e pelo outonal calvário dionisíaco o tíaso de ménades embriagadas de sol e mosto, de dança e Eros, de orgia e vida, a caminho das montanhas para celebrar os mistérios? Elas estão entre nós, mas nós, vendados, não as vemos. Como nossa alma mudou! Outrora, a alma era a alma das coisas. Nesta hora crepuscular, a alma é a coisa das coisas. Mostra o relógio da arqueologia as horas do tempo de que fomos feitos, para melhor nos vermos. E o da alma que não há deuses acima de deuses. Em Dionísio e Deméter, a Terra contém-nos, sãos; em Cristo, doentes, substituímo-la por céus gasosos como a alma.

Enviou-me Dionísio, o lídio deus, filho da adúltera relação entre o senhor do Olimpo e a mortal Sémele, para te acordar e celebrar. Que seria da humanidade sem adultério divino? Esquecida do deus, esquecida de ti, vives em heresia. Possuído pelo deus mosto, aconteceu a metamorfose do corpo e da alma: eis-me, fauno com a alma do corpo e tu, zoologia fantástica, centauro no feminino: corpo de poldra, vestido de pele de gamo, e onde era suposto estar o equídeo pescoço o torso feminino nasce, enfeitado de louras crinas, que caem em sensualidade desgrenhada sobre teu rosto mosqueado de animalidade. De natureza vestida, os seios, túmidos de desejo e de mamilos eriçados, vestem-te o peito e, agitada por Eros, rabeias provocação, ao ritmo de centáurea voz rouca e feroz, o deus saudando: Evoé!

Ouve, ouve, aproxima-se o cortejo das bacantes. Ei-las, de tirso na mão, coroadas de folhas de carvalho, de heras e flores. Ei-las, ei-las, de pés nus, vestidas de túnicas brancas de branco linho, cintadas de serpentes, subindo, na melodia da flauta de loto, à frígia montanha, onde acontecerá a iniciação aos mistérios, segundo a liturgia dos três passos da orgia, que conduz ao cimo do cio da terra e do sangue. Entremos no tíaso, entremos, sigamos as sacerdotisas do deus, e assistamos aos mistérios: a dança frenética, ao som dos bombos de sonoridade surda, amola a lâmina do desejo, que, afiada e pronta, arranha, morde, rasga e esquarteja a selvagem cria; de passo em passo, eis-nos no momento mais alto da celebração: a omofagia, a refeição natural sem fogo nem sal. Ménades, como estais aspergidas de morte, extenuadas de êxtase e tomadas de sede! Feri a rocha, feri, com vosso nártex fogoso e que dela brote o sagrado líquido que a sede mata e o sabor do sangue quebra. Saudemos Dionísio, Evoé, saudemo-lo! Saudemos o deus da máscara, o deus que expulsa a conveniência e restitui à Natureza o sentir. Saudemos o deus que liberta os instintos naturais e os solta no corpo das ménades.
Creras no mito quanto eu e, como no párodo das Bacantes, diríamos com Eurípides: Quem me dera ir para Chipre, / essa ilha de Afrodite, / onde habitam os amores / que enfeitam os mortais... /Aí moram as Graças / aí mora o Desejo! Aí é lícito às Bacantes / celebrar as orgias.