quarta-feira, 2 de agosto de 2006

BACANTE

Quem diz que os deuses da Terra dela partiram para sempre? Quem diz que as Bacantes abandonaram, com Brómio, o que brama como os animais selvagens, as míticas terras da Frígia? Quem não vê pelo natal dos pampos e pelo outonal calvário dionisíaco o tíaso de ménades embriagadas de sol e mosto, de dança e Eros, de orgia e vida, a caminho das montanhas para celebrar os mistérios? Elas estão entre nós, mas nós, vendados, não as vemos. Como nossa alma mudou! Outrora, a alma era a alma das coisas. Nesta hora crepuscular, a alma é a coisa das coisas. Mostra o relógio da arqueologia as horas do tempo de que fomos feitos, para melhor nos vermos. E o da alma que não há deuses acima de deuses. Em Dionísio e Deméter, a Terra contém-nos, sãos; em Cristo, doentes, substituímo-la por céus gasosos como a alma.

Enviou-me Dionísio, o lídio deus, filho da adúltera relação entre o senhor do Olimpo e a mortal Sémele, para te acordar e celebrar. Que seria da humanidade sem adultério divino? Esquecida do deus, esquecida de ti, vives em heresia. Possuído pelo deus mosto, aconteceu a metamorfose do corpo e da alma: eis-me, fauno com a alma do corpo e tu, zoologia fantástica, centauro no feminino: corpo de poldra, vestido de pele de gamo, e onde era suposto estar o equídeo pescoço o torso feminino nasce, enfeitado de louras crinas, que caem em sensualidade desgrenhada sobre teu rosto mosqueado de animalidade. De natureza vestida, os seios, túmidos de desejo e de mamilos eriçados, vestem-te o peito e, agitada por Eros, rabeias provocação, ao ritmo de centáurea voz rouca e feroz, o deus saudando: Evoé!

Ouve, ouve, aproxima-se o cortejo das bacantes. Ei-las, de tirso na mão, coroadas de folhas de carvalho, de heras e flores. Ei-las, ei-las, de pés nus, vestidas de túnicas brancas de branco linho, cintadas de serpentes, subindo, na melodia da flauta de loto, à frígia montanha, onde acontecerá a iniciação aos mistérios, segundo a liturgia dos três passos da orgia, que conduz ao cimo do cio da terra e do sangue. Entremos no tíaso, entremos, sigamos as sacerdotisas do deus, e assistamos aos mistérios: a dança frenética, ao som dos bombos de sonoridade surda, amola a lâmina do desejo, que, afiada e pronta, arranha, morde, rasga e esquarteja a selvagem cria; de passo em passo, eis-nos no momento mais alto da celebração: a omofagia, a refeição natural sem fogo nem sal. Ménades, como estais aspergidas de morte, extenuadas de êxtase e tomadas de sede! Feri a rocha, feri, com vosso nártex fogoso e que dela brote o sagrado líquido que a sede mata e o sabor do sangue quebra. Saudemos Dionísio, Evoé, saudemo-lo! Saudemos o deus da máscara, o deus que expulsa a conveniência e restitui à Natureza o sentir. Saudemos o deus que liberta os instintos naturais e os solta no corpo das ménades.
Creras no mito quanto eu e, como no párodo das Bacantes, diríamos com Eurípides: Quem me dera ir para Chipre, / essa ilha de Afrodite, / onde habitam os amores / que enfeitam os mortais... /Aí moram as Graças / aí mora o Desejo! Aí é lícito às Bacantes / celebrar as orgias.