quarta-feira, 19 de julho de 2006

O “MITOCÍDIO”

«O mito é o nada que é tudo».
Fernando Pessoa, «Ulisses», in Mensagem

Embora ainda distantes de 2043, ano em que Portugal fará, se lá chegarmos, novecentos anos, gente há que quer matá-lo antes. Eugénia Cunha, bióloga e antropóloga forense da Universidade de Coimbra, melhor, teóloga do novo deus – o cientismo, herdeiro do comtismo –, foi, à última hora, impedida, e bem, pela ministra da Cultura, de abrir o túmulo de D. Afonso Henriques, no Mosteiro de Santa Cruz, justificando esta o impedimento por não ter conhecimento da “investigação” em curso, embora com autorização da direcção regional de Coimbra do IPPAR para o fazer! A dita investigadora tinha já andado, em Abril, a bisbilhotar – com autorização de quem? – o túmulo, tendo para o efeito introduzido, através de um pequeno orifício, um endoscópio. Tudo isto, diz, para seguir o exemplo do que se faz no estrangeiro. Onde? No Egipto, onde os mortos nada adiantaram em esconder-se dos vivos? Se, em nome da imagem, se tenta acabar com a privacidade dos vivos, do mesmo modo, se pretende, em nome da “investigação científica”, acabar com o descanso e privacidade dos mortos. Tudo estava planeado (não fosse ela mulher!): a Universidade de Estrasburgo era o lugar escolhido para fazer os exames, infelizmente dele, científicos.

Esta teóloga do cientismo, excelente intérprete de um big-brother científico e de uma visão individualista da história, em moda, além de não ter respeito pelos mortos e de não temer a sua profanação, não deu conta de que esteve em vias de cometer o crime maior: matar o mito. Se não sabe e não tem consciência do crime que esteve para cometer, leia com atenção ou peça a alguém que lhe explique o verso de Fernando Pessoa: o mito é o nada que é tudo. Ora, o que a forense não sabe, e isto é o mais grave, é que ao desenterrar o primeiro rei enterrava o mito. Senhora forense, no túmulo, não está D. Afonso Henriques, está o mito! Que nos interessa a bisbilhotice desta paparazzi do cientismo – saber: o rosto do rei, a sua ficha médica (depois de morto!), o seu DNA ( se corresponde com o de D. Sancho I, a fim de tirar a eterna dúvida romana: o pai é sempre incerto?), e a sua dieta, assuntos que encheriam as revistas mundanas e os tablóides, mas nem uma página da História –, se ficamos sem o mito D. Afonso Henriques? Senhora forense, tocar no mito é mexer com as origens. Sabe que aquele que não as tem ou não sabe delas não sobreviverá? Num momento de grande fragilidade nacional, o que, infelizmente, não é de agora, matar o mito seria agravar ainda mais a crise. Pare, imediatamente, com o “mitocídio”, minha senhora. Aproveite as suas qualidades de investigadora, se as tem, para o foro judicial. Está é proibida de mexer e de bisbilhotar onde e o que não deve.

A moda pegou de tal modo que este tipo de “investigação” não pára aqui: outra teóloga, Maria Augusta Luísa Cruz, esta da Universidade do Minho, quer fazer o mesmo ao túmulo de D. Sebastião, para saber do «perfil genético» daquele que Actéon castigou! Quererá esta outra paparazzi tirar a limpo as preocupações camonianas sobre o castigo que o Amor fez pender sobre D. Sebastião por ser revelde ao amor: ao fazer ua famosa expedição / contra o mundo revelde, por que emende / erros grandes que há dias nele estão (Os Lusíadas, IX, 25)? Não há ninguém que ensine a esta professora universitária que, em D. Sebastião, está o mito do sebastianismo e, no seu túmulo, uns ossos que dificilmente serão os dele? A exemplo do que fizemos acima com a sua colega, aconselho-a a ler, bem, o poema «D. Sebastião» de Fernando Pessoa, na Mensagem. Eis dois versos: É o que eu me sonhei que eterno dura, / É Esse que regressarei. Quer uma opinião? Investigue o perfil genético de Sócrates e de Cavaco, dois exemplares, vivos, quer mais e melhor?, de sebastianismo político – não se apresentaram, ambos, como salvadores? –, que, assim, será desnecessário, amanhã, desenterrá-los, e deixe-se de histórias. Esta gente não se sonha e por isso nem a mente nem os ossos se lhe vão aproveitar. Era bom que a igreja católica abrisse a ordenação às mulheres para ver se se dedicavam a outras teologias. Tinham muito com que se entreter: muitos santos para desenterrar, muitas relíquias para saber da sua autenticidade e muita fé para matar. O que esta gente procura é construir a sua eternidade no desenterrar/enterrar a eternidade dos outros.