quinta-feira, 11 de janeiro de 2007

AS “PASSAS” POLÍTICAS

Cavaco que, pelo Natal, ficou, por estranho que pareça, mais encavacado do que todo o aparelho do PS com os elogios socratistas à coabitação e decalque políticos, entre Belém e S. Bento, vem agora, pelo Ano Novo, “distanciar-se” do voluntarismo e optimismo políticos de José Sócrates e exigir resultados para o ano que começou, nas áreas da economia, justiça e educação. Melhor, a pedir que o governo se comporte como um verdadeiro patrão e que exija resultados. O “distanciamento” é mais formal do que real. Até porque o governo de Sócrates é um verdadeiro governo de Bloco Central, sem o PSD. Esta a questão e contradição fundamentais da política actual que explicam, por um lado, a sintonia, no plano político-institucional, entre Cavaco e Sócrates, e, por outro, o mal estar, no plano partidário, no PSD, porque o torna desnecessário, lhe ata os braços e o impossibilita de ser oposição, restando-lhe, somente, a função de puxar Sócrates mais para a direita, ao mesmo tempo que Sócrates, respondendo à esquerda, vai dizendo que não, que não senhor, que o PS é de esquerda, de uma esquerda moderna e que as novas fronteiras são as não fronteiras. O recado da direita, seja o de Belém seja o da Rua São Caetano, é o mesmo: se, por um lado, satisfeitos por Sócrates ter visto a necessidade de uma política de direita, para sair da crise, por outro, insatisfeitos por ainda não ser suficientemente de direita.

Assim, as “passas” de Cavaco e as de Sócrates, são, embora os “passes”, as mesmas: exigir e responsabilizar, unilateralmente, os trabalhadores em geral, funcionários e professores. Apesar do cristianíssimo Cavaco se mostrar preocupado com a pobreza e com a necessidade de se manter a coesão social, a sua avaliação política é feita pela bitola fria do pragmatismo de direita (tal como a de Sócrates). De uma coisa Sócrates pode estar certo: se a economia não der sinais positivos e sustentáveis de mudança, durante 2007, terá a direita – Cavaco/PSD/CDS – a culpá-lo por ter ficado a meio do caminho reformista de direita, e a esquerda a responsabilizar a sua deriva pela e à direita como causa principal do fracasso. Resultados? Quanto à economia, quem pode garantir que o milagre aconteça? A economia mais do que determinada pela política determina esta. Quanto à justiça, como pedir contas a um pacto feito pelo “centrão”, tendo este se esquecido (?), Cavaco inclusive, da corrupção? Sobre educação: a escolha de Maria de Lurdes não foi um escolha pela educação e para educação, mas uma escolha da e pela «Organização» e nada melhor do que contratar uma capataz. Quando se elege a «Organização» e se esquecem a educação e os intervenientes, e não se avalia o «Desenvolvimento Curricular», como pretender dar o salto? E como acreditar num ministério que governa para a opinião pública (perdi os professores mas ganhei a população!) e substitui o diálogo pelo insulto? A ministra não só perdeu os bons professores como não ganhou os maus. Só quem não sabe onde está (em que mundo(s) estudou Sócrates?) pode afirmar: o novo Estatuto da Carreira Docente é essencial para a busca de «uma educação de excelência» em Portugal.

O sucesso de Sócrates, até ao momento, não está em ele ter “acabado” com o Outro (PSD), mas em ter transformado o PS no Outro (PSD). Com Sócrates, entramos no Mesmo. A política é uma mistura de freudismo e surrealismo com os papeis todos trocados: Cavaco é o professor-presidente que exige resultados, apesar de detestar a política e os partidos; Sócrates mandou às malvas a utopia e ocupou o espaço do PSD; este, sem espaço, vive, acompanhado do BE e do PCP, na utopia!

sábado, 6 de janeiro de 2007

DO INFERNO

«O inferno é onde quase todos vivem sem que o saibam
e donde bem poucos saem para sabê-lo... »
[Eudoro de Sousa, Mitologia História e Mito]

Esta frase lembra-nos uma outra, presente no Livro do Desassossego: «A decadência é a perda total da inconsciência; porque a inconsciência é o fundamento da vida. O coração, se pudesse, pararia». E mais estes versos de Ricardo Reis: só os que vão no rio das coisas são Felizes, porque neles pensa e sente / A vida, que não eles. A inconsciência é o analgésico que permite sobreviver no seio das labaredas das penas vitais. Ela está perto da naturalidade do instinto, contudo, este é, naturalmente, saúde, e a inconsciência, humanamente, analgésico. Só, saindo, entramos: só sabemos o inferno, que o vício é, depois de sairmos dele. Só quem saiu da vida, sabe da vida. Só quem saiu do inferno sabe do inferno e, também, sabe que a porta de acesso mais fácil aos infernos é a dos céus. Afinal, quem está desterrado e condenado: o que o está realmente, mas não o sabendo, ou o que o está no sabê-lo? Não há drama, não há tragédia, não há inferno, fora da consciência.

O inferno é o «mundo humano», melhor: a consciência dele. Este, sim, o verdadeiro inferno, que se potencia se se está contra ele. Que crime cometemos para os deuses nos condenarem à vida? Quem duvida que a vida é uma condenação? A religião não tenta salvá-la? A política não diz que a quer corrigir? A arte não faz do sonho a sua metafísica redentora? O instinto está acima da condenação. Na Natureza, não só o sofrimento está reduzido ao mínimo como não há consciência dele. A Civilização tem sido um inferno não só para o homem como para a Natureza e a vida, em geral. Se alguma espécie, superior à nossa, nos suceder, ver-nos-á como de facto somos: uma praga. E como as outras espécies invocarão os seus deuses para se verem livres de nós! Porque a melhor maneira de entrar é sair, todo o que sai, para entrar, condena-se à exclusão. Só sabemos o que é o amor, saindo dele, mas, se o sabemos, não o temos. Qual o melhor: tê-lo sem o saber, ou sabê-lo e não tê-lo? A consciência expulsa-nos das coisas, porque nos obriga a estar de fora para as ver. Assim, o consciente é temerário e o inconsciente aventureiro. A consciência não é boa companheira para a vida: a vida é para estar dentro dela e a melhor forma de a cumprir é não a questionar. Ela está fora de qualquer questão: «a inconsciência é o fundamento da vida». A consciência é, vitalmente, decadência e o consciente um doente.

O mito está certo: a queda foi a expulsão da inocência. Ser livre é livrarmo-nos de tudo o que nos prende, contudo, ao abdicarmos de possuir e de ser possuídos, abdicamos de viver. Só precisa de liberdade quem se sabe condenado. Os outros cumprem a vida. Por isso, só os que abdicam e «saem do inferno para sabê-lo», e tê-lo, têm necessidade e liberdade para criar céus. Todos precisam de um céu: o paraíso, para os crentes, a democracia, para os inconscientes, a Arte, para os conscientes.

terça-feira, 2 de janeiro de 2007

BOM ANO NOVO

O fim de ano é tempo de balanço. Para quem a vida é ter, o fim de ano é tempo de balanço e de encerramento de contas. E se, comercialmente, o haver tem de bater o dever, ontologicamente, o ser tem de bater o não ser. A História é comércio e nós mercadoria: ter ou não ter, eis a questão. E se, num plano civilizacional, a maioria é minoria no ter, que dizer, no plano essencial: no ser? Para quantos as palavras do príncipe Hamlet – To be or not to be, that is the question – é mesmo a questão fundamental? E ainda bem que a não é, porque, se fosse, a vida era revolta e a História uma Casa de Saúde. Se a ontologia tivesse a exigência comercial, quantos restariam sem falir? Apesar da democracia, a História, seja pelo ter seja pelo ser, é de minorias. E se a questão do ter é do foro da política, cada vez mais desacreditada e em que poucos se empenham a não ser os que ganham com isso e com ela, a questão do ser, além de pertencer ao foro íntimo de cada um, não traz vantagens. Quem, ontologicamente, está consciente ou sonha ou vive sob a tentação do suicídio: “Ser ou não ser, eis a questão: / Será mais digno para o espírito suportar / Os golpes e as feridas de um infame destino / Ou revoltar-se contra a vaga de males / E pôr fim a tudo pela recusa de viver? / Morrer, dormir. Acabou-se, e pelo sono esquecer / Os tormentos e todas as agressões / Que afligem a nossa condição. Eis aí o fim /Mais desejável. Morrer, dormir. / Dormir! Então talvez sonhar: eis a questão. [Shakespeare, Hamlet, III, 1]. A arte, ao abdicar e não servir o ter, não deixa de ser o “suicídio” necessário para poder sonhar. E criar.

O balanço, positivo, do ser que faço deste ano, devo-o, principalmente, às seguintes leituras: El Arco y la Lira, de Octavio Paz, as obras Dans l’Œil du Miroir, L’individu, la mort, l’amour, e Mythe et pensée chez les grecs, de Jean-Pierre Vernant, From the many to the One, de A.W.H. Adkins, e o já clássico A Descoberta do Espírito, de Bruno Snell. Em El Arco y la Lira, espécie de Poética, encontrei – só agora! Como há livros que encontramos tarde! – a confirmação do pouco que tinha já pensado sobre o assunto e a resposta ao muito que ignorava. O ensaio El Arco y la Lira de Octávio Paz, que tem nos ensaios pessoanos Heróstrato e Impermanência os seus congéneres literários, confirma aquilo que vem já da Romantik: que não há poetar (poiesis) sem poética (teoria). Graças aos livros de Jean-Pierre Vernant, de A.W.H. Adkins e de Bruno Snell, fiz o meu cursinho de psicologia histórica que, além de me darem a conhecer os estratos das camadas da “psicologia” grega, me vai permitir saber ler Homero – pondo de lado os meus olhos civilizacionais – e compreender melhor por que razão O Guardador de Rebanhos é mais uma teoria sobre a sensação primitiva do que a sua expressão poética.

Para todos, que a vida de todos precisa – tenham ou não tenham, sejam ou não sejam, sonhem ou não sonhem, com a questão ou sem ela, connosco concordem ou discordem –, Bom Ano Novo.