sábado, 25 de novembro de 2006

LINHA DO DOURO: DOENTE COMO O DOURO

De Barca de Alva a São Bento, descendentemente, de São Bento a Barca de Alva, ascendentemente, durante cem anos, quantas composições de passageiros e de mercadorias, quantos chefes de estação a darem o sinal de partida para a ansiedade, quanta pouca-terra em terra pouca e de poucos, quantas viagens e quantas as águas, quantas esperas e despedidas, quanto vapor e dor, quantas vidas à procura dela, quantos ceguinhos a pedir esmola a troco de um contar desgraças, quantas regueifas compradas por mãos engalfinhadas e penduradas das carruagens, quantas concertinas a alegrar as carruagens, quantos pregões: “rebuçados da Régua”, quanto espaço aberto, quanta via para o infinito, quanta economia?! Corria o ano de 1887 e o dia 8 de Dezembro, quando o comboio chegou a Barca Alva. Junqueiro, tinha, por esta altura, já editado a Velhice do Padre Eterno (1885) e o seu poema «A Bênção da Locomotiva» – A obra está completa. A máquina flameja, / Desenrolando o fumo em ondas pelo ar. / Mas, antes de partir mandem chamara Igreja, / Que é preciso que um bispo a venha baptizar. //(...) // Vamos, esconjurai-lhe o demo que ela encerra, / Extraí a heresia ao aço lampejante! / Ela acaba de vir das forjas d’Inglaterra, / E há-de ser com certeza um pouco protestante – de que escolhemos estas duas estâncias, não deixa de estar ligado à chegada eminente dos carris a Barca de Alva, mesmo ao lado da sua Quinta da Batoca que fica no outro lado do rio. Bênçãos que, hoje, continuam quer sob a aspersão do hissope quer sob outras formas, quando se inaugura isto ou aquilo, apesar de estarmos num Estado não confessional! Vá lá a gente querer entender isto! Chegados a 1987, ano do seu centésimo aniversário, que esperaríamos senão comemorações e parabéns? Aconteceu o oposto: o fecho da linha entre Pocinho e Barca de Alva. Quem decidiu a sua morte em ano de aniversário, além de mostrar ignorância e insensibilidade, matou uma história e empobreceu ainda mais a Região. O Douro é rio e comboio. Matar um é matar o outro. Os gastos para os eventos, sem fim, relativos às comemoração dos 250 anos da criação da Região Demarcada do Douro não só esqueceram a mutilação da Linha do Douro, entre o Pocinho e Barca de Alva, como poderiam ter sido bem melhor aplicados. O silêncio nas estações de Pocinho, Côa, Almendra e Barca de Alva é aterrador e a deterioração, destruição e vandalização da linha um desrespeito pela memória e um entrave para o futuro.

Há uns dias, aconteceu que, entre a estação de Foz Côa e o Vesúvio, um comboio de mercadorias descarrilou, tendo ficado feridos o maquinista e o ajudante. Sem meios de comunicação – os telemóveis não têm sinal durante grande parte da linha! – tiveram que abandonar o comboio e partir, embora feridos, à procura de socorro à Quinta do Vesúvio, de que o contista José Aguilar tem um conto – O Vesúvio –, tendo sido recebidos pelo seu feitor, que, servindo-se do telefone fixo, pediu ajuda para homens, feridos, e composição, descarrilada e tombada. E se maquinista e ajudante tivessem ficado feridos ao ponto de não se poderem deslocar? E se amanhã sucede o mesmo com uma composição de passageiros? Lá teremos, então, o ministro António Costa, na televisão, pedir a demissão e abalar tal como fez o patrão do PS, Jorge Coelho, no seguimento da queda da ponte de Entre-os-Rios, mas desta vez com a oposição de Sócrates: sair por quê?, Costa? Há lá razão para tal? Nem as penses! Quem manda? Ficas e ficas mesmo!

Contudo, se não estranho o silêncio do poder central, estranho o silêncio cúmplice dos autarcas do Alto Douro, não só relativamente a este acontecimento como à necessidade de munir a linha de toda a segurança, inclusive meios de comunicação, e de a reactivar entre o Pocinho e Barca de Alva. O acontecido, que eu saiba, teve somente ecos nos JN e pelo Norte ficou, e, localmente, a única voz crítica que se ouviu foi a dos bombeiros de Provezende, porque uma das corporações que tem, no distrito de Vila Real, a maior frente ferroviária e sem meios para dar resposta, em caso de alguma emergência. A Região do Alto Douro precisa de um rosto que a defenda e projecte, porque os autarcas, por regra, nada mais fazem do que ficar pela sua paróquia partidária e concelhia.

Post scriptum. Como a História é imprevisível e para não levar a sério! No 21.º encontro sobre Cooperação Económica Ásia-Pacífico (APEC – 21 Asia-Pacific Economic Co-operation), a decorrer em Hanoi, assistimos não só à recepção, em grande, do ex-agressor, por parte do agredido (bombardeado e queimado com napalm), como ao facto de o partido comunista vietnamita, órfão do partido comunista irmão da ex-URSS, ter, também, de receber Putin, ex-membro da KBG, mas actualmente “czar” da Rússia! Alguém que se atrevesse a prever metade disto, nos anos oitenta do século passado, era acusado, no mínimo, de louco varrido.